Pular para o conteúdo principal

Duas leituras



Faz tempo que não falo dos livros. Recomendo dois deles, um mais que o outro: o novo do Zambra, Formas de voltar para casa, e o outro de uma autora uruguaia, Inês Bortagaray, Um, dois e já. Os dois, por curiosidade, ambientados num tempo afetivo muito perigoso, o tempo da privação de liberdade, dos silêncios prolongados, dos sumiços, do sumidouro em que se transformou todo o continente.

O primeiro é um típico exemplar de Zambra: ficção e não ficção se enovelando, exposição dos mecanismos que movimentam a construção do discurso literário, um relato que ilumina o outro, memória e amor. Autoficção? Desaparecimento, ditadura, amor, persistência, recorrência, o abismo entre gerações? Definitivamente, não faço ideia da matéria do romance.  

Preciso reler, agora pinçando cada palavra da página separadamente e examinando-a sob luz forte, uma luz branca, como um cirurgião ou um mecânico ou um biólogo que contempla muito serenamente uma espécie marinha jamais vista ou um osso partido em três pedaços ou uma peça de automóvel desgastada pelo uso contínuo. É assim que me sinto ao encontrar as mesmas palavras que manejo todo santo dia sendo utilizadas de outro modo na literatura. Sendo as mesmas, são outras. Parecem dizer, há uma dimensão mágica. Basta olhar.

Um, dois e já é uma viagem tão bonita que o que quer que eu diga poderá  estragá-la. Então apenas leiam e depois me digam o que há no fim da jornada que fazemos todos os dias em direções e sentidos que apenas muito raramente coincidem.   

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d