Estive tão longe que não pude sequer acenar.
Quando virei na décima quinta esquina, já não sabia para que lado ficava a casa,
a porta certa, a janela de moldura verde, a fachada rosa, a árvore na calçada,
o telhado, o portão enferrujado, os brinquedos na caixa, as roupas na gaveta, a
fenda aberta no meio da rua e dentro da fenda os monstros que saltavam e
engoliam quem se atrevesse a olhar bem lá dentro.
Quem olha bem lá dentro, escuta os monstros
sentenciarem, escorre suave pela boca do vazio.
Sei que caminhava e ia adiante, o que nem sempre quer dizer a mesma coisa – quase nunca quer dizer. Ninguém reparava que não houvesse rumo certo e que as mudanças de sentido fossem tão aleatórias quanto os voos de alguns pássaros e o tropeço dos bêbados. Não importava que em casa o pai chorasse e a mãe acorresse à vizinhança pedindo ajuda. Por favor, meu filho desapareceu. Preciso encontrá-lo, e me encontrar talvez não significasse mais pra mim do que pra ela.
Sozinho, fardamento escolar, pasta sob o
braço, onze da manhã, um menininho de cinco ou seis anos com um relógio de
pulso e uma cicatriz. Como não encontrasse resposta para a única pergunta que carregava no bolso, resolveu pedir ajuda a um estranho. Para qual lado fica o lado aonde quero chegar?
O homem gesticulou, pegou papel e caneta, rabiscou cálculos complicadíssimos antes de finalmente dizer que, depois de tantas esquinas, qualquer lado implicava certezas e dúvidas. Foi embora mancando.
O homem gesticulou, pegou papel e caneta, rabiscou cálculos complicadíssimos antes de finalmente dizer que, depois de tantas esquinas, qualquer lado implicava certezas e dúvidas. Foi embora mancando.
Nessa época o meu cabelo cobria parte dos
olhos, escondendo do mundo o que tinha vontade de enxergar e mostrando em cores berrantes o que preferia fingir que não existia.
O lado bom de se perder quando criança é
essa ignorância: a gente nunca dá pela falta, e toda perda é também ganho. Mesmo essa dorzinha é parte da aventura.
Até que a gente cresce e continua a se
perder, mas agora fica triste pra caramba e nada parece tão grandioso quanto
antes: o campo de futebol é um retângulo de terra batida do tamanho de uma
quadra, a árvore é uma castanhola, o telhado é feito do mesmo material que
recobre as outras casas. E todas as janelas estão abertas ou fechadas, jamais abertas e fechadas ao mesmo tempo.
Só a razão por que desviamos do trajeto é
que permanece um mistério, mas até isso talvez um dia passe e tudo seja de fato o que é, sem sombra nem mudanças no caminho nem trombadas na décima quinta esquina.