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Os sonhos da mãe




Passo agora a contar o sonho da mãe, uma geminiana de 54 anos, separada, três filhos, dois homens e uma mulher com idades variando entre 33 e 25, dois dos quais casados duas vezes, um deles convencido de que frequentemente basta espiar um pouco a mãe ou o pai em ação na cozinha para entender como tudo foi terminar assim.

A mãe vem sonhando com jacarés com uma insistência que me faz pensar em muita coisa. Levado ao pé da letra, o sonho, no qual a mãe luta com o animal, pode não querer dizer nada. À luz dos incontáveis fenômenos sobre os quais não temos tanta certeza, porém, significa muito. Por exemplo, que a mãe talvez precise enfrentar uma criatura agressiva, cheia de dentes, que submerge nas águas mais turvas de um rio caudaloso tão logo algum perigo a ameace. A mãe saberá se defender?

Há um agravante. A mãe sonha lutando com jacarés não em seu habitat natural, a água. As lutas são travadas na cama, o centro nervoso de um palácio doméstico. Ali, debaixo dos lençóis, na foz da alcova, rolando de um lado pro outro, a mulher agarra-se ao bicho.  

Finalmente, nesses sonhos, a mãe nunca vence os jacarés, mas é jogada para fora da cama por eles. Surpreende-se no chão, assustada, mas intacta.   

Presumo que ser expulsa da própria cama por outro animal queira dizer mais do que posso imaginar agora. Por isso resolvi escrever. Como tenho sonhado bastante com o que escrevo, gostaria de ter a oportunidade de entrar nos sonhos da mãe e, no último instante, quando ela estiver prestes a cair, impedir a queda. 

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