Pular para o conteúdo principal

A orquestra

Olha, embora pareça o contrário, às vezes é muito difícil dizer alguma coisa diferente da usual empregando as mesmas palavras ou palavras da mesma família, variando apenas o ritmo da frase e a pontuação, recorrendo a meia dúzia de adjetivos e outra meia dúzia de advérbios, sempre vistos com desconfiança.

É difícil por muitas razões, mas principalmente porque a capacidade de soar diferente exige um sem número de atributos e habilidades, tais como talento e disposição, além de técnica e sorte, e tudo isso tem que caminhar junto como numa orquestra, e muitas vezes até tentamos fazer com que a música soe harmoniosa como se tocada por uma orquestra afinada, mesmo quando o resultado lembra uma algaravia sonora.

Olha, por causa dessas e de outras dificuldades, tantas que sequer posso enumerar, frequentemente abrimos mão da ideia odiosa de orquestra e logo agradecemos a todos os deuses por isso. É quando resolvemos tocar qualquer música, em qualquer tom, de qualquer jeito, com qualquer instrumento, produzindo uma sonoridade que, se não é a mais agradável, é a que, ouvida à distância, entre prédios e carros passando na rua, debaixo de chuva ou sol, numa quarta cinzenta ou num domingo iluminado, prontamente reconhecemos como nossa.

Não sei que relação pode haver entre essa ideia de orquestra desengonçada e essa vontade - porque é de vontade que estamos falando - de comunicar alguma coisa diferente utilizando a língua de sempre. Mas suspeito que exista alguma. 

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d