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Ripley salva



Vinda do espaço, uma mulher aterrissa – cai, melhor dizendo – em um planeta onde vive um pequeno grupo de homens. Uma colônia penal devotada ao trabalho e à fé.

Formado por estupradores, homicidas, sociopatas etc., esse grupo se dedica principalmente a escavar o solo à procura de minério, que depois será transformado em chapas para contêineres de lixo espacial. Toda a cultura é de subsistência. A fé sustenta-se na expectativa da chegada do salvador. De acordo com o carcereiro de Fury 161 – como o planeta é conhecido no sistema –, a crença não elimina a monstruosidade de que cada uma dessas pessoas é portadora.

Apesar da péssima aparência, no planetinha há ordem, relativa paz, comida, água e uma atmosfera respirável. A frágil ascese mantém cada elo atado. A condição de marginalidade do lugar ajuda os internos a ignorar o restante do universo: a vida que tinham lá fora. Estão todos concentrados em humanizar-se por meio do labor e da religião.

Tudo isso acaba quando a mulher despenca do céu, única sobrevivente de um pouso forçado. Como em qualquer parábola bíblica em que a fêmea é retratada como abrigo das forças do mal, a tenente Ripley traz consigo uma besta. Sem saber, gesta um monstro.

Antes, porém, a mulher perturba a ordem impondo a mera presença do corpo. Como não se submete à segregação entre sexos, mistura-se. No refeitório, recusa-se a comer em uma mesa separada dos demais. Não tolera a hierarquia masculina segundo a qual a tentação é afastada mediante a clausura do elemento feminino. Ripley se mostra, atrai e seduz um homem, com quem faz sexo. Só então a besta começa a atacar.

Dupla condição maldita: ser mulher e parir a morte. 

Reparem na ironia. Pecadores da pior estirpe, os homens aguardavam a chegada do salvador: foram premiados com uma mulher. Queriam esperança: conheceram um flagelo cujo sangue é feito de ácido. Praticavam o celibato: tiveram que resistir ao corpo feminino. Foram confrontados com a morte e precisaram lutar para sobreviver: descobriram-se de mãos vazias. Fragilizados, desarmados, à mercê de uma criatura bestial. Não contavam que a mulher, antes vista como mensageira e veículo da destruição, também podia representar salvação.

Como uma espécie de Cristo que se sacrifica para que seus filhos vivam, Ripley se atira em uma caldeira. Agarrada à besta, imola-se no fogo.

Não tinha percebido, mas Alien III se encaixaria perfeitamente numa versão alternativa do antigo testamento. 

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