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Pista de dança

De tudo, fica a pergunta: é possível escrever fora do corpo?  

Isso mesmo, o corpo de lado, num canto da sala ou guardado a sete chaves. O corpo à espera de que terminemos o serviço em prazo recorde, livres das imundícies, sorridentes e satisfeitos, senhores de pequenas vitórias domésticas.

Afinal, o corpo é risco: circuito de caminhos que se atravessam, rotas desenhadas por mãos que sequer se adivinham.

E risco, condição sem a qual viver não se distingue de acumular gordura para um inverno que jamais chegará. Um grafismo físico, marca, ranhura de pele; uma condição.

É necessário haver corpo para estar à deriva. Um barquinho de isopor desgovernado, um drone de papel de seda, uma Curiosity cega para o que não é rocha alienígena, pequena astronave atravessando um cinturão de asteroides de mentira. Para tudo há precisão de corpo. Ou não? 

É possível desembaçar-se dessa ampla camada cuja governança tanto amedronta? Sendo possível, é desejável?

Receio que não, que enfileirar palavras acabe por nos forçar ao erro. Digam o que queiram, até silenciem, finjam-se versados noutra língua que não a própria. E, mesmo assim, haverá em tudo uma vontade, um vetor apontado pra lá. Ou pra cá. Ou pra todos os lados.

Daí que escrever imponha nudez e que a nudez incomode. Incomodando, produza chispas.

Que depois vão incendiar esse terreno já calcinado.

É a condição, também dupla, do corpo: pista de dança e campo minado. 

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