Pular para o conteúdo principal

Pista de dança

De tudo, fica a pergunta: é possível escrever fora do corpo?  

Isso mesmo, o corpo de lado, num canto da sala ou guardado a sete chaves. O corpo à espera de que terminemos o serviço em prazo recorde, livres das imundícies, sorridentes e satisfeitos, senhores de pequenas vitórias domésticas.

Afinal, o corpo é risco: circuito de caminhos que se atravessam, rotas desenhadas por mãos que sequer se adivinham.

E risco, condição sem a qual viver não se distingue de acumular gordura para um inverno que jamais chegará. Um grafismo físico, marca, ranhura de pele; uma condição.

É necessário haver corpo para estar à deriva. Um barquinho de isopor desgovernado, um drone de papel de seda, uma Curiosity cega para o que não é rocha alienígena, pequena astronave atravessando um cinturão de asteroides de mentira. Para tudo há precisão de corpo. Ou não? 

É possível desembaçar-se dessa ampla camada cuja governança tanto amedronta? Sendo possível, é desejável?

Receio que não, que enfileirar palavras acabe por nos forçar ao erro. Digam o que queiram, até silenciem, finjam-se versados noutra língua que não a própria. E, mesmo assim, haverá em tudo uma vontade, um vetor apontado pra lá. Ou pra cá. Ou pra todos os lados.

Daí que escrever imponha nudez e que a nudez incomode. Incomodando, produza chispas.

Que depois vão incendiar esse terreno já calcinado.

É a condição, também dupla, do corpo: pista de dança e campo minado. 

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...