Acima, uma típica banda de garagem dos anos oitenta posa para fotografia
A novidade é que os funcionários da garagem da empresa São Benedito compraram um rádio. É um modelo barato, a pilha, fácil de encontrar nos camelôs do centro. Tem entrada USB. É azul fluorescente. Armazena uma milhão de canções, falem de amor ou sexo.
Ocorre que os funcionários da garagem da empresa São Benedito passam a
madrugada sintonizados numa FM. Escutam principalmente forró e música
romântica. O volume é aceitável, ninguém reclama. De vez em quando o vento
sopra uma nota mais estridente. Está tudo bem, digo pra eles.
Continuamos assim por um bom tempo: os três
homens movendo-se entre baldes e escovões e eu, fumando na janela. Avisto ao
longe um gato. Será um gato?, pergunto a ninguém. Sim, é um gato, ninguém responde.
Por volta das 3h30 da manhã, quando a garagem volta a ganhar movimento, decidimos parar. Estamos cansados. Gastamos o corpo no exercício da banalidade.
Logo amanhece. Ainda há tempo para dormir,
penso. Dormimos. Sonho com um verso da Adília Lopes. É extenso. Esqueço. Sonho com
uma cena de uma HQ. Sonhar com quadrinhos só não é melhor que sonhar dirigindo. Não
tenho carteira de motorista. Daí que sonhar dirigindo é um desses raros momentos de felicidade plena - não acordasse, seria perfeito.
A Paula Fernandes canta para duas dezenas
de ônibus brancos com listras verdes e um nome escrito na lateral: São Benedito. É um público solene, reconheçamo-lo. Ao final da música, não aplaude nem
vaia. Mantém-se rigorosamente como veio ao mundo.
Volto a olhar os homens. Uma cena e tanto.
Imaginem que, desse ponto luminoso, ora verde, ora azul, uma voz iluminada, a
da Paula Fernandes ou a do Diogo Nogueira, não faz diferença, entra pelo cano
de escapamento dos ônibus, chega até uma janela distante, dobra à esquina,
percorre uma travessa, sobe uma árvore, assusta um gato.
O que seria capaz de ligar todos esses pontos
soltos?