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Ao comando da mão

Não sei se é falta de tempo ou de disposição ou de ambos. Vai ser cada vez mais difícil escrever aqui. Assim, sem justificativa, sem uma razão muito clara. Uma dessas coisas que nos empurram inevitavelmente para algo, não importa se pra frente ou pra trás. Sem motivo, o único lugar aonde iria é o supermercado.

Escrever a pretexto de nada, sem querer, sem vontade, não está ao meu alcance. Escrever para conjurar vazios, para criar fomes, isso não tem mais espaço. Escrever pra revolver, isso é aborrecido. Escrever pra inventar, invadir-se, cada invento deixando a nu, cada nudez mais vergonhosa que a outra. No momento quero roupas, cobrir a superfície, desfilar a pele debaixo do tecido.

Continuo sem saber o mais importante, que novidade. O mais importante, quem consegue descobrir? É tarefa para venturosos. O mais importante esconde uma mentira. O mais importante esmaga o menos importante. E o menos importante importa agora mais que o mais. O mais importante agora é descer e subir escadas.

Se sentir saudade, volto. No restante do tempo, prefiro ficar calado. Ou escrever pra dentro. É possível dizer ao inverso, ao contrário? É possível impronunciar? Desmembrar as sílabas, pô-las sem braços nem pernas, apanhar o sentido e virá-lo de ponta-cabeça? Dizer é ativar regiões do corpo. É possível dizer sem o corpo? Dizer apenas racionalmente, idealmente.

Vou anotar em papeizinhos, como fazia antes. E guardar esses papeizinhos em gavetas, como antes. Contar histórias exige mais que a habilidade de narrar. Exige respiração. A respiração não são as vírgulas. A professora do primário estava errada. A respiração é o ritmo, o ritmo é a respiração. Respirar compassado, resfolegar, acalmar, tudo são movimentos do peito.

Quero minha respiração ao comando da mão. 

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