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Desilusionismo



Li uma reportagem que chamou a minha atenção menos pela tragédia que apresentava (pessoas morando nas ruas), o que me envergonha, do que pela súbita curiosidade que a expressão “desilusão amorosa” despertou, piscando como uma luzinha frenética no painel de lugares-comuns. 

A desilusão amorosa é o comportamento ou o efeito naturalmente daninhos, é a conclusão de um processo em que ao menos uma das partes, querendo ou não, coloca a viola no saco e vai em busca de outra coisa porque já não é possível conviver com esse outro cuja imagem se estilhaçou em mil e um pedaços e agora cada pedaço é diferente do conjunto harmonioso que resplandecia na cama às primeiras horas do dia. Nada ali é familiar, e o sentimento é de total desterro. 

A desilusão é o fim da picada, e não custa lembrar que o fim da picada é o ponto derradeiro além do qual a mata é tão cerrada que os golpes de facão já não são capazes de abrir caminho. Desiludir-se é estar além dessa fronteira e, portanto, dessa chance, é exorbitar a possibilidade de um recomeço ou retomada. 

A desilusão é a desconstrução, contra a própria vontade ou não, de uma autoimagem fundada em um outro que é menos ele mesmo do que uma miscelânea customizada para nosso deleite. Enquanto houve disposição, pudemos, com fé cega, preencher as lacunas.

Tudo isso é uma maneira torta de tentar explicar a desilusão amorosa sem, no entanto, explicá-la de fato. A questão mais importante, porém, é outra. 

Iludir-se amorosamente é mais válido que se desiludir? Quantos moradores, não de rua, mas de apartamentos e casas, estão neste momento iludidos, condição que, se não se equipara à desgraça de não ter um teto, tampouco suaviza o drama de se saber refém de uma trama igualmente perigosa?

Desiludir-se é tão pior assim que iludir-se?

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