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O atravessador



Confundir as fronteiras é uma atividade sem fim, sem finalidade; sem fim, ininterrupta, que se estende no tempo e no espaço. Logo despropositada, mas assentada em base real: confundir fronteiras é afirmar-se portador de nada e de tudo, falante de todas as línguas e de nenhuma, hábil mercador de um produto que interessa a qualquer um e a ninguém.

Virtual serendipitoso, é a figura do atravessador a que melhor representa o desfazedor de fronteiras. Diluir postulados, desmanchar capitanias de sentido, reunir opostos morais, encarar o próximo e o distante como igualmente dessemelhantes e nisso não enxergar qualquer paradoxo. 

Comunicar o incomunicável com a mesma graça, ir de uma margem a outra do espectro, divertir-se com o infortúnio que é habitar o tempo poroso. Tudo isso o atravessador está capacitado a desempenhar, embora, por alguma razão, não desempenhe. 

Sendo o profissional do futuro, o que obrigatoriamente o transforma em profissional do passado e também do presente, o atravessador ainda se ressente da pouca valorização do mercado de trabalho, que não lhe atribui a importância devida. O que talvez nunca venha a acontecer.

Afinal, o que se espera desse homem sobre o qual se projetam todos os sonhos? Que realize, empreenda, faça. O que de fato o atravessador tem sido pra nós e também pra si? Pouco mais que nada.

E o que se espera desse tempo inseguro chamado futuro? Que ao menos sirva de farol e, ao sugerir qualquer possibilidade de direção segura, mais confunda que esclareça, e nessa confusão cumpra algum propósito. 

Assim tem sido a vida do homem-atravessador, guiada por faróis de mentirinha que, a depender da luz, dos ventos, da hora do dia, do humor do guarda da fronteira, apontam para lugares diferentes.   

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