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O morador

Depois do café, a cabeça fala sozinha, a boca não sabe se concorda; a boca sempre teme ferir as suscetibilidades, os olhos acompanham o facão deitar abaixo as plantas do terreno ao lado, as pernas descansam, as mãos escrevem ainda que não haja uma razão clara; quanto menos clareza, mais as mãos se agitam, e por enquanto não há nada que a barriga e o restante do corpo possam fazer senão esperar, esperar que a vó saia da UTI falando os palavrões de sempre, a mãe se recupere, o pai não se aborreça mais porque o filho passa dias sem telefonar, o segundo semestre chegue e depois termine, as árvores cresçam apenas para serem cortadas novamente, a água esvazie no fundo da pia e volte a acumular, o lixo se amontoe e em seguida desapareça, o tempo cubra de ferrugem o corrimão do prédio e de branco os cabelos, as páginas se preencham à vontade, as linhas desentortem, as curvas endireitem, as retas se percam nas paralelas, as histórias se contem a si mesmas, e que nada disso pareça excepcional, um salto, uma mudança, uma ruptura, um avançar louco em direção ao futuro brumoso, mas apenas o andamento natural de tudo, como que uma respiração terrena, ordinária, baixando e subindo, conectando sutilmente as pessoas diferentes que somos de tempos em tempos, menos para revivê-las, mais para lembrá-las.  

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Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d