A letra degenera? A minha, sim, a
manuscrita, a que sai do encontro da ponta da caneta ou do lápis com a
superfície do papel ou de outra qualquer, a que resulta do movimento repetitivo do pulso, que inclina a cada nova curva do alfabeto. Falo dessa letra miúda,
dançante, longilínea ou cartesiana: a letra muda. A minha foi degenerando,
degenerando, até chegar ao estado atual de garrancho, de coisa única,
emaranhado de fios que apenas remotamente guardam alguma semelhança com a letra
bonita, quase feminina, da 7ª série.
A dúvida é se a falência da letra
corresponde a outra, pessoal, moral, estética, ou se uma não tem que ver com a
outra, se são domínios separados da experiência, sendo a letra uma ferramenta
que se deforma gradualmente sem que possamos fazer nada a respeito.
Será assim? É a letra um instrumento de corte que se desgasta naturalmente ao limite da cegueira? É a letra reflexo de uma modalidade de pensamento retilíneo, contínuo, compassado, de palavras que se juntam vagarosamente, uma depois da outra, respeitando um fluxo delicado, que se transforma em pluralidade e bifurcações e veredas e desvios de rota à medida que a vida vai ganhando em complexidade e fundos falsos e, com ela, a letra inclina-se, engole outras letras, num canibalismo que mais serve à pressa que à clareza?
Será assim? É a letra um instrumento de corte que se desgasta naturalmente ao limite da cegueira? É a letra reflexo de uma modalidade de pensamento retilíneo, contínuo, compassado, de palavras que se juntam vagarosamente, uma depois da outra, respeitando um fluxo delicado, que se transforma em pluralidade e bifurcações e veredas e desvios de rota à medida que a vida vai ganhando em complexidade e fundos falsos e, com ela, a letra inclina-se, engole outras letras, num canibalismo que mais serve à pressa que à clareza?
Essa mudança, basicamente de grafia, é constante
até certo ponto, quando resolvemos parar e, se for o caso, recuperar um pouco
da graça da escrita manuscrita mais simples, a estética do caderno pautado, o
movimento da redação com tema estipulado, a marcação de frases da tarefa
copiada da lousa, o capricho da esferográfica nas primeiras aulas, o empenho do
pulso ainda inédito da série nova.
É possível devolver ingenuidade ao que envelhece?
É possível devolver ingenuidade ao que envelhece?
Desentortar as
letras, eis um esforço gigantesco. Assemelha-se a desentortar a visão, a audição, os sentidos todos. Talvez
nem valha a pena, talvez melhor seja tentar enxergar na confusão da frase derreada, no A arqueado, no F alongado, no B preguiçoso uma nesga de sentido que se denuncia, um querer dizer que se espirala, uma vontade miúda de desejo perdida entre mil e outras coisas que estão ali apenas para disfarçar.
É um exercício de descoberta o de desvendar a própria letra, de descoberta e estranhamento, de afastamento e chegada.
É um exercício de descoberta o de desvendar a própria letra, de descoberta e estranhamento, de afastamento e chegada.
De repente, um pedaço da gente soa
alienígena, e lá estamos nós, à procura de qualquer coisa que pareça familiar. Por
mágica, não é mais a letra torta, velha, degenerada, mas a de sempre, cuidada,
redonda ou sutilmente inclinada, as duas letras sobrepostas.
A letra velha sabe a nova, a nova sabe a velha.
A letra velha sabe a nova, a nova sabe a velha.