A digestão é uma atividade inevitavelmente lenta,
quer se goste dela ou não, cada pedaço daquilo que botamos pra dentro via oral e que
se destina ao preenchimento da cota de proteínas necessárias à continuidade da
vida se reveste, portanto, dessa qualidade morosa.
Comer dá trabalho, digerir dá mais ainda.
Comer é um ato gostoso, mas
mecânico, amplo, democrático em certo sentido, apaixonado, charmoso, pessoas
comendo em torno da mesa, quanta felicidade, pessoas felizes se alimentando, a
mastigação a pleno vapor, mandíbulas orgulhosas triturando os sólidos e se
abrindo vulgarmente para os líquidos, dentes brancos agora levemente salpicados
dos restinhos, um feijão, uma folha, frutas, fiapo de carne.
Comer é parque aberto à visitação, obra
pública, gesto simbólico, digestão é pessoal, é cada um por si, comer diz
respeito à imagem que fazemos de nós mesmos, digerir é o que somos de fato.
E o que somos de fato leva tempo para se
definir, ou seja, não se define, ou se define temporariamente, ou se define
precariamente, assim como a digestão, cujo subproduto é a incerteza, toda essa
rede de mecanismos internos funcionando segundo regras inapreensíveis.
Comer é da ordem do exibível, digerir é do
guardável. Ninguém se exibe digerindo alimentos, mostrando o que aproveitou do
jantar, o que achou válido no almoço, quanto tempo levou pra finalmente
processar todo esse arroz de brócolis com lasanha ou o churrasco do fim de
semana.
Vejam, comer é diferente, temos prazer em
nos mostrar assim, já digerir nem sempre parece glorioso, a gente simplesmente
não sabe o que tirou de valor de algo que comeu.
Quando comemos, estamos certos do valor
simbólico do ato, mas o que fica no organismo é realmente um mistério.