Pular para o conteúdo principal

O mito da Iracema escapista




Segundo post script

Está na hora de deixar um pouco de lado o mito da Iracema escapista, a índia cujo projeto de vida é embarcar na primeira jangada que a maré trouxer ou no primeiro navio que aportar no cais, deixando para trás a aldeia, a geografia e o mocororó.

Dane-se a aldeia. A Iracema escapista fazia sentido há vinte ou trinta anos, mas hoje? Embora tudo aponte para o contrário, o mito da índia romântica que espera o socorro vindo das águas é contraproducente.

Qualquer que seja o ponto de vista, a índia de pele curtida e raízes aéreas é um beco sem saída. No cinema, na literatura, na pintura, na música, Iracema precisa é de ficar, dar um chega pra lá definitivo no salvador da pátria caucasiano, na boia atirada pelo marinheiro com gravata borboleta, na esperança de vida-lazer nas terras além-fortim.

Nem refugiar-se, nem guardar. Nem desenraizada, nem mantenedora da fortuna cultural do aldeamento. Não há nada pra guardar, tampouco pra jogar no mato. Tão nociva quanto a escapista, a Iracema guardiã reflete um status de imobilidade, de permanente vigilância dos perigos. É igual à Fátima, nunca sai do pedestal, eternamente vergando um arco sem linha, sem flecha. 

Permitam essa digressão. A fortaleza limita-se a duas mulheres circunspectas, uma vestida da cabeça aos pés, a outra seminua, uma devota da fé cristã, a outra pagã/tributária das crenças nativas, uma de bochechas rosadas, a outra amorenada pela frequência com que se deitava ao sol, uma guardadora da fé, do espírito, a outra do mar, do corpo.

As duas, Iracema e Fátima, sem se conhecerem, são o de que qualquer homem ou mulher precisa. Melhor seria fundir a índia à santa, o mar à fé, a igreja à orla, o pecado da carne exposta à retidão da carne velada. 

Fim da digressão. 

Fato é que o arco da Iracema escapista é quase sempre estéril, não atira, não apara, não assusta, não dissuade os perigos nem convida ao combate. É hoje apenas um apetrecho para turista ver e vândalo depredar, sem maior serventia para a cultura.

A boa Iracema é a que entende que ficar ou partir é um falso dilema. A boa Iracema é a que constrói nesse terreiro uma gincana que ninguém sabe direito o que é, apenas que tem um baticum atraente e dá vontade de participar. 

Postagens mais visitadas deste blog

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...