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O abismo é logo ali




Se alguns filmes se desenvolvem num crescendo, isto é, movimentam-se tendo como princípio a ideia de que cada pedacinho de cena deixado para trás contribuirá no final para uma sensação única de gozo ou de algum outro tipo de deleite menos retumbante, outros percorrem o caminho contrário. Partem do clímax para o anticlímax, da velocidade 5 para a velocidade 0. E, ao terminarem, causam uma sensação que beira a frustração.

Não sei se esse é exatamente o caso de O abismo prateado, exibido em Fortaleza num esquema alternativo no último fim de semana. Se não é totalmente, é em termos.  O filme cumpre esse pequeno roteiro. Promete bastante, mas entrega pouco ao final, deixando o espectador com o sentimento de que faltou algo, uma cena, uma fala, um diálogo, uma emoção. A personagem deveria ter agido de outra maneira etc. Aquilo não podia ser tudo, o diretor estava escondendo uma parte da história, exatamente aquela que iria nos embevecer e nos fazer sair da sala com a expressão abestada de contentamento.

Isso não aconteceu. Dos três movimentos de O abismo prateado – “evento cataclísmico”, ao qual se seguem a crise e, finalmente, a sugestão de serenidade e pacificação -, apenas o primeiro parece funcionar bem. Para quem não acompanhou a história, o filme é inspirado na canção Olhos nos olhos, do Chico Buarque. Fala de separação e de todo esse canavial de paixões que vêm em roldão, numa barafunda de sentimentos que se agitam em torvelinho quando o eixo do mundo da gente falseia de uma hora pra outra.

 Um dia, Violeta (Alessandra Negrini) é abandonada pelo marido, que vai embora deixando pra trás apenas um lacônico “eu não te amo mais” no celular da esposa. O que vem a seguir é o abismo. 

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