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Um pouco antes da hora

Trecho da crônica que sai amanhã no jornal O Povo

"Entre 21h e meia-noite, o que fizemos, como previsto, não foi exatamente uma aventura: a) comer mais cachorro-quente, b) tomar uma Coca trincando de gelada, c) esbarrar nos patinadores, d) ser engolfado pelas turmas arrastando crianças suadas que escapavam dos ônibus em direção à praia já cantando com entusiasmo os sucessos de Luan Santana, e) tentar usar o banheiro químico (sem sucesso), f) decidir entre ficar mais perto do palco ou da ponte, com larga vantagem de votos favoráveis à última, g) escolher uma pedra cuja superfície fosse plana, sem tanta rugosidade e alinhada ao solo o bastante para que pudéssemos sentar, h) comprar pipoca (excelente ideia), i) lamentar a falta de uma máquina fotográfica mas não saber explicar por que é importante ter sempre uma máquina fotográfica a tiracolo, j) imediatamente esquecer da máquina e até festejar que não tivéssemos uma, l) relembrar, mês a mês, os principais acontecimentos do ano (campo pessoal), m) perceber a recorrência de certos padrões em 2012, n) eleger como o principal deles a compreensão mútua de que organizar as coisas (campo pessoal) é sempre o melhor caminho, o) cantarolar uns trechinhos de uma música do Beto Barbosa que tocava perto, entre p) e y) pusemos novamente as engrenagens da memória para funcionar, com especial atenção aos fatos que nos aproximaram em detrimento daqueles que nos afastaram, sem, contudo, parecer excessivamente melosos ou deslumbrados ou artificialmente românticos, como um casal sentado três pedras à frente que se afagava conscienciosamente e outro que ficou de costas um para o outro, num movimento que logo  interpretamos como sinal grave de dissolução iminente." 

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Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

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