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Dentro da noite, dentro do dia

Passa das 23h54, precisamente 23h55, uma hora bem adiantada, muita gente dorme, muita gente mantém-se alerta, dentro do dia, dentro da noite, alerta quer dizer um passo à frente, um atrás, desconfiado de uma maneira saudável, desconfiado de um modo amistoso, sem descrer totalmente, sem crer em absoluto, na medida, consolar-se com a medida exata.

O que é a medida exata?

Dar voltas, dar voltas, passear, esse rapaz precisa distração, enganar-se um pouco olhando as ondas, o vendedor do coco, o brinquedo colorido que pisca zunindo e depois cai lentamente em rodopios enquanto cá em baixo a meninada e talvez um ou outro adulto espiam calmamente um tempo que parece ficar ali recuado,  um arranjo de plástico sem graça que hipnotiza.

Arranjo sem graça.

Estou tão sem graça, semana difícil, sumiram com todas as balanças das farmácias da cidade, ainda resta uma, eu sei, fica ao lado da pastelaria mais famosa do centro, por coincidência, peço um pastel e refrigerante e na saída subo na balança e espero a engenhoca marcar 74, 75 e até 76.  

Dentro do dia, dentro da noite.

Não entendo essa fixação, não entendo essa marca, não entendo esse sorriso nem esse tempo inteiro assim, de cara pra cima, esse tempo gasto em quê?

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