Pular para o conteúdo principal

Drama reptiliano




Toda semana um calango cai na pia da lavanderia, daí fico observando o calango tranquilo esperar que algo aconteça, uma mão amiga quem sabe resgatá-lo da superfície lisa, escorregadia, mas nada, o animal continua lá parado, à espera, a mão não chega, o gavião não chega e é impensável supor que a própria ideia de salvação seja algo presente na mente reptiliana dessa criatura, imagino que repudie profundamente o descuido ao atravessar uma fresta da parede, um desvão no telhado, o instante da troca de pernas que redundou na queda, o que significa em bom português filosófico um calango cair da parede?, sempre me pergunto, um bicho tão adaptado às escaladas de repente vem abaixo, tão próprio para trepar nos locais mais altos, mais difíceis, um montanhista de sangue frio, esperto, então lá estava esse calango estúpido de sangue frio, não transpirava, a vida para ele agora é feita de espera, momentos de angústia, indefinição, ali cercado pela brancura do falso mármore da pia da lavanderia de um prédio de classe média baixa, a mesma pia utilizada com frequência para enxágue das roupas íntimas dos condôminos, é meio dia, a cauda levemente retorcida entra no ralo, as patas da frente projetam a cabeça pra cima, o corpo está alinhado à torneira branca, um tormento semelhante a ficar preso no elevador entre o 14º e o 15º andares, tão quieto, tão quieto, tenho pena desse calango, minha vontade era de ir até lá e, com a mão protegida por uma sacola plástica de supermercado, envolvê-lo carinhosamente e finalmente atirar o pequeno lagarto, um legítimo ancestral dos dinossauros, no terreno vizinho, para, quem sabe, ser abocanhado pelo exército de gatos que ronda os quintais.

Definitivamente, vida de calango é um troço complicado. 

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d