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Foi sem intenção, sem vontade, sem querer, repetia havia muito tempo, uma gag sonora conhecida dos amigos.

Certa noite fez-se a pergunta inevitável: o que acabara de falar carregava alguma verdade? Estava sendo absolutamente sincero? Favor justificar a resposta.

Duvidava, mas duvidar tampouco era atividade que gozasse de uma áurea de inabalável respeitabilidade. Conhecia tipos asquerosos cuja obra dilapidava certezas e punha abaixo verdades escandalosas.

Surpreendente não era que duvidasse da felicidade quando feliz ou da infelicidade quando infeliz.

Surpreendia-o que o terreno jamais parecesse suficientemente concreto.

Posso caminhar, afirmava, mas logo vinha o tropeço num desvão qualquer da calçada.

Essa dúvida persistente, responsável por tombos mesmo quando encarava um pavimento ideal: essa dúvida recebia farto provimento de ração. Era alimentada.

Equilibrava opostos, aproximava distantes.

Exercício antigo, mas não ultrapassado: pronunciar vagarosamente cada palavra, fazendo-a livre de sotaque, som, significado, contexto, despida de estilo, oca.

Qualquer remota noção linguística: desossada.

Qualquer remota qualidade: abandonada na curva.

Apenas o arranjo de letras que expressam conjunto arbitrário de sons: casa, amor, fábrica, pizza, café, guarda-roupa, passagem, meta, abajur, sinal, sexo, cama.

Notem o aspecto postiço de qualquer manifestação cultural, dizia aos alunos, certo de que formava consciências.

Era a diversão de criança, a fragilidade do adulto, o nó górdio existencial – frase feita entreouvida em conversa de bar.

Às vezes é mais difícil; às vezes, mais fácil.

Hoje é mais fácil.

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