Pular para o conteúdo principal

Aquelas horas


Outro dia foi um desses dias que minha prima falava tanto, um dia realmente estranho. Logo de manhã tocou uma música que não ouvia tinha bastante tempo.

Duas semanas atrás encontrou casualmente na rua, quis desviar-se, mudar de calçada, subir no muro, enfiar-se na boca de lobo, emendar-se ao fio, arraia.

Foi em frente, sempre em frente, como dizia Renato Russo, tão estúpido já naquela época.

Era melhor que tivesse dobrado a esquina, conclui agora, inquilino remediado da casa do sem jeito.

A distância entre dias estranhos, o intervalo entre eventos singulares, esse espaço cada vez menor.

É apenas uma teoria, mas como dói – mau Drummond.

Uma estranheza assim, habitual, mercantil, empacotada a vácuo. Levada adiante, adiada, encarada sob a sombra da árvore.

Não há no mundo nada mais inofensivo que a sombra.

Um medo distante e bobo, de repente foi o que sentiu.

Medida, certa, prevista, mas estranheza, convenhamos, um nobre sentimento autêntico celebrado sem grande pompa na cozinha da própria casa, a sala que é cozinha que é copa que é quarto que é tudo, inclusive igreja, empresa, hotel, associação.

Espaços sobrepostos; muitas camadas, nenhuma agradável.

Acorda tarde, dorme tarde, almoça tarde, troca refeições, acreditem, agora começou também a deixar a urina para depois, a água, a comida do mesmo modo, e a antecipar o gosto do alimento.

Antecipar-se ao gozo, a bem dizer.

Pensa na academia com alguma frequência, na corrida, na caminhada até o trabalho, na volta, na lua, no banho mais demorado que o normal, nos livros, no último filme de super-herói, se pagará a anuidade do cartão, na vida, pensa na coleta seletiva, na eleição, no fim de semana.

Na mãe – tem 54 anos, um mistério.

Na avó – tem 94, puro escracho.

Na sobrinha: tem seis, não morrerá jamais.

Revê todas as mulheres, pensa, pensa, em seguida pensa mais um pouco.

Uma hora dessas aí todo mundo, sem exceção, terá que fazer academia, diz a mulher, discursa na fila, poucos lhe dão ouvidos. Parece muito séria, muito carente, muito convencida, parece mesmo muito disposta a matar ou morrer.

Todo mundo bonitinho na academia, repete, a perna balançando num tique simpático.

Tem a paixão à frente do aperto de mão.

Do lado de fora, confere se há dinheiro trocado, há, entra no primeiro ônibus.

Destino: Paris, Texas? Não.

Praça do Ferreira, Fortaleza, sol do meio-dia.

Todo mundo lá, sublinha, agora apenas uma voz cheia de dedos que tamborilam num tampo de mesa imaginário.

Inclusive eu, pensa, inclusive o motorista e aquela senhora mais gordinha com marca de suor debaixo do braço.

Estranho, afinal, ao final, a distância entre essas horas malucas é cada vez menor.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d