Pular para o conteúdo principal

TEFLON ASSASSINO


A espuma laranja da panela do macarrão, o novo jogo de copos, o pano de coar rasgado, a torneira de giro emperrado.

Na vida doméstica, todas as torneiras deveriam ser hidráulicas. Como a direção hidráulica.

É feriado, faz um sol danado, é o mesmo sol que se diverte queimando todo mundo à sombra.

Mais um patamar do condomínio foi erguido da noite para o dia.

Disseram que a imobiliária vendeu todos os apartamentos em 16 horas, um feito notável.

Cada imóvel custaria 800 mil reais.

São duas famílias por andar, o que, pelos padrões atuais, significa dizer quatro filhos, quatro carros, umas seis televisões e muitos computadores.

Ligaram do banco outro dia. Em seguida, ligaram da locadora. Foram dispensados com muxoxos.

A voz, um fiozinho enleado. Sugere carência energética. Trata-se da atávica tendência a comunicar nesse idioma miúdo.

“Falar pra dentro.” É assim que se referem, irritados, fulano é legal, mas fala tão pra dentro que dá nos nervos. Falar pra dentro não é ser preguiçoso, é falar pra dentro.

Falar pra dentro é diferente de falar sozinho? Falar pra dentro é falar vizinhando o arrependimento? Arrependimento é hábito?

É também quando a fala sai prematura, antes da hora. É, ocasionalmente, uma maneira de sublinhar inexistência.

Essa panela de macarrão está soltando teflon, pensa e canta ao mesmo tempo. É uma música antiga, de quando era adolescente, nesse sentido do IBGE.

Receia que, acumulado no organismo, o teflon provoque morte lenta, irreversível.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas