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Sonho

Sonhou as poucas razões que havia. Foi um dia de semana trabalhoso, sem café, passara a maior parte do tempo encarando o rosto das pessoas à procura de sinais, queria perguntar, a meio do caminho detinha-se, desmemoriado, esquecido. Era caso de voltar e tentar recuperar o tempo. Um início de mês complicado.

Entre cada parte instalava-se essa zona cinzenta habitada por bichos e pessoas, uma fauna completa, um ecossistema, de modo que, ao imaginar-se ali, caminhando sozinho, um clarão de planície varrida por tempestades nas madrugadas, a planície até então vazia enchia-se de pequenos animais carnívoros dispostos a ferir de morte, a matar, a morder e lamber, a dar voltas em torno em busca do corpo massacrado.

Era evidente, tentava decifrar o simbolismo do sonho, a morte, a competição expressa, um incômodo, embora não reconhecesse imediatamente o quadro característico de tensão exacerbada.

Pensou ligar ao amigo, consultá-lo quanto à razão extraordinária da presciência onírica, rir um pouco. Tardou, e já não quereria incomodar ninguém.

Foi para diante, o trabalho reclamava dedicação, mais uma garrafa de café inteirinha, a xícara coberta da marca adocicada do lábio. Registrou em letra cursiva, “primeiro encobre-se tudo, feito monturo de pedras e restos de panos melados em fluidos do corpo, depois alarga-se o sentido, encontrando no informe a necessária figura”.

Deus, clareza, deus, brevidade, deus, a precisão.

Entre elos, havia esse espaço negro desabitado de que falaram sempre, um bloco frouxo de significado lançado ao espaço, a pedra angular de nada, o monólito alienígena contra o qual eram arremessadas baterias de perguntas, cada uma restante inativa, sem resposta, porque o bloco, o mesmo de quando tinha uma cicatriz recente no braço, na base do escroto, esse bloco representava carga insondável cotidiana, ou qualquer besteira do tipo, pensou, já abusado de tanto misticismo.

Por fim, sem estar convencido, mas crendo ter atingido o ponto final da linha, refez mentalmente o percurso, sonho e narrativa, assustava-o a ausência de luminosidade, uma algaravia sem nexo, convenceu-se de que talvez o melhor fosse dormir e, dia seguinte, forcejar, quem sabe, quem sabe obtivesse uma nesga.

Deitou-se mais uma vez sem esperança de que operasse uma máquina diferente.

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