Pular para o conteúdo principal

Questiunculinhas

Parêntese: havia tempos não dava uma boa caminhada ao longo de toda a extensão do calçadão da Beira Mar. Reparei a falta no final da noite de ontem, já amplamente dominado pelo sentimento de culpa depois de ter comido um portentoso sanduíche.

E que lugar horrível, santos deus! Maltratada, nossa orla é uma confusão dos diabos, uma feira livre como as que se armam precariamente nos quatro cantos da cidade, só que pior: há essa cercadura de prédios a empatar a vista, os ventos, a vida. Uma concertina formada por megaedifícios embicando a poucos metros da faixa de areia, equivalentes dos pega-ladrões feitos de caco de vidro e pregados aos muros de antigamente. É o lugar mais opressivo da cidade. O mais feio também.

Não há beleza que resista a esgoto correndo sem tampa, ocupação irregular (de ambulantes e donos de restaurantes) e poluição visual e sonora – o brinquedo cintilante atirado às alturas, a matraca que gira e produz lixo sonoro, o carro de som que troveja o próximo show de humor.

É terra de ninguém, e de todos. Quem quer, encosta uma banca e dá início ao comércio. De acarajé, açaí, cobra de mentirinha, óculos esportes, pacote de viagem às praias do interior, cachorro-quente, trenzinho da alegria, patins, skate, triciclo, bracelete, santo em miniatura, sandália de couro etc. O mando de campo é de quem chegar primeiro.

Como eu queria que fosse o calçadão: ocupado, cheio, mas livre, desimpedido, desobstruído. Uma praça, ponto de encontro, da paquera, de namoro, da cerveja, do ganha-pão. Organizado, limpo, conservado, sem tanta bagunça nem zoada, livre das estruturas totêmicas no meio do passeio. Menos feixes de luz verde, que depois vão vandalizar nos estádios de futebol ou no alto dos prédios. Mais gente apenas batendo perna.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d