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Não, não é nem isso. Deixa ver se te explico direito. É como se todo o resto fosse organização e limpeza e metas alcançadas. Um amigo que comprou apartamento, viajou, engravidou, foi morar fora, toda essa áurea positiva e intimidadora emanando das coisas que dão certo na vida dos outros enquanto a sua parece trilhar um caminho errado.

Ou nem isso, um descaminho. Sei como é. Bem foda mesmo – que é outra forma de falar “tamo aqui pra isso”, pra acertar e, eventualmente, se foder.

É, mas tô ficando vacinada. Quando começo a sentir qualquer coisa assim penso logo: “Massa, mas pode ser mentira e é provável que seja mesmo”. Passo adiante.

Puxa, baita lenitivo. Tipo AAS pra falta de autoestima, é?

Quem sabe...

Porque, por mais brutal que seja... Cara, a gente tem que compreender. Não só compreender, tem que conviver, o que é pior, com o sucesso alheio.

[Caem na risada. Pedem mais cerveja. Ao contrário do que haviam prognosticado, estava sendo bom].

Falando sério... Sei mais nem o que ia dizer.

Lucas tá bem?

Tá, estudando pra caralho. Quer ver se desenrola esse mestrado até o final do semestre.

Tomara que dê certo.

[Silêncio].

Foda.

O quê?

Nada específico, é mais uma impressão generalista equivalente a uma interjeição.

Legenda para um suspiro.

É.

Hoje no supermercado fiquei pensando na organização das coisas, Felipe, e lembrei tudo que houve. Acho que é por isso que estamos aqui.

Pode ser. Mas e aí?

E aí nada. Era apenas mais um dado do cenário refletindo serenidade e disposição férrea à vida em contraste com esse tumulto que te falei, só isso. O queijo coalho soando horripilante. A espantosa bandeja de macarrão parisiense.

[Riem novamente. As cervejas chegam].

É bom te ver.

Também achei.

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