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Puta engenheiro


Foi rápido?, queriam que dissesse. Envergonhado, reconhece que não. Demorou até perceber, não havia mais nada além da agulha sulcando o silêncio do rótulo.

O fim. Sem anunciação. Sem predicados. Sons derradeiros agora pequenos, a guitarra antes estridente suavizava e o baixo soava distante. A bateria apenas um leve rufar, dedos finíssimos batucando distraídos a superfície de uma tampa de maçã verde.

A música para. Imaginava tudo de outra forma. Se chegar ao fim, se acabar, tenho certeza que toca Leonard Cohen na churrascaria da esquina, é o mínimo que se espera do desfecho.

Uma calma que sentia no intervalo das músicas, essa calma era inteira fraudulenta. No segundo que antecede a faixa seguinte, tinha mesmo era de lidar com o suspenso, o indiviso, o entrementes, digamos, ausência barra presença, e é nesse estado de coisas que percebe, sem muito drama porque afinal porra, a gente tinha sofrido pra caralho desde o começo.

Tava na cara que isso não era jeito de se terminar nada, então o que tinha visto correspondia a qualquer coisa assim: o que termina ecoa, o que não começa esperança.

Uma e outra deflagradas. No mesmo espaço interpelam-se, dutos corrediços em que assistia a própria vida escorrer vadia. Canalizada, enchia a banheira do vizinho, lavava os pratos do vizinho, tirava a sujeira dos panos do vizinho.

Sem dificuldade reconhece também o que foi, o que há de resíduo. Indefinição é palavra riscada do dicionário. É comedido barra decidido em partes iguais, sabe-se maduro quando pode, ri da cautela se lhe pedem, dobra à esquina e demora a chegar quando convidado.

É falso convidado, essa é que é a verdade, na sala retesa as costas, a perna como que um membro mecânico que substitui o amputado. Na cozinha a recusa à familiaridade, no quarto dispensa o papo descontraído, na varanda quando ainda há varanda é que pode fumar e de repente até dizer três coisas realmente suas.

É desse mal que sofre. Comemorar é um pesadelo. Festa, se inevitável, é construir a própria casa na árvore.

O cara, dizem, é um autêntico engenheiro da espera.

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