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Wilson, o escrotinho


Depois de ler Wilson, de Daniel Clowes, fiquei alguns minutos pensando sobre as razões que levam uma pessoa a simpatizar com a escrotidão, que é uma maneira de viver - nem pior, nem melhor.

Há um lado bom e um ruim na escrotidão. Provavelmente há mais lados bons e ruins, e outros que não são exatamente bons ou ruins, mas misturados. Para efeito didático, fiquemos apenas com os antípodas, o que resume bem toda a épica aventura humana e facilita a compreensão.

Embora pouca gente perceba, um sujeito escroto é utilíssimo, essa é que é a verdade, e nisso reside a fatura positiva. Por razões diversas, as pessoas tendem a ser dissimuladas. Não é que sejam mentirosas, não concluam precipitadamente. Digamos que, ao mirar benefícios, a maior parte de nós tenha por hábito expressar algo parcial ou totalmente contrário ao que pensa. Para muita gente, o nome disso é “habilidade social”.

É aí que Wilson entra em cena. As ferramentas de trabalho do personagem resumem-se a uma só: não-participar.

Imaginem todas as esferas de interação social que mobilizam a vida: família, casamento, trabalho, escola, igreja etc. Wilson não participará de nenhuma. Pior: dia após dia, demonstrará a fraude onde quer que haja fraude. Quem de nós suportaria a tarefa por mais de uma semana?

Wilson é um filho da puta, não é preciso ir muito longe para admitir isso. O que causa surpresa é que nos sintamos tão próximos dele - tão próximos a ponto de sentirmos saudade.

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