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QUEIXAS OUTRAS


Nota pública ao público fiel da nossa linha

A gerência está reunida agora mesmo para tratar de assuntos do mais alto interesse de seus clientes. Nossos produtos, embora recolhidos para recall e sujeitos a alterações radicais nos próximos anos, foram concebidos com rigor por um grupo de engenheiros recém formados todavia bastante dispostos e precisados de dinheiro, no que, como podem ver, estão corretíssimos, visto que emprego hoje não dá em árvore, de modo que, cientes do nosso papel no novo modelo de negócios subjacente às mudanças que se seguiram à chegada das redes sociais e das novas formas de comunicabilidade, propusemos à direção do grupo a adoção de paradigmas mais condizentes com os tempos a cuja análise chegamos após havermos parametrizado absolutamente todo o espectro de crescimento: as classes C, D e E, com destaque especial para a C, motor da economia global e profunda referência na remodelação estética dos campos literário, audiovisual e, por que não acrescentar, tecnológico.

Sendo assim, pedimos a todos um pouco de compreensão, sem nos esquecermos de ressaltar que, mediante esforço repetitivo ao qual não se chega sem lesões, o produto final, aquele que repousa tranquilamente nas suas mãos, nas mãos do seu pai e nas da sua mãe, enfim, nas mãos da sua família e nas dos seus amigos e parentes, o que esperamos ardentemente é que o resultado do nosso trabalho fique cada dia melhor com o fito de tornar nossas vidas uma grande e inconsolável incógnita.

Assinado: Chefe-maior & Família.

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Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

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