Pular para o conteúdo principal

Quem matou os peixes?


Eram 10 peixes: um lápis, um branquelo maiorzinho que passei a chamar de Moby, quatro miúdos bem finos com listras coloridas longitudinais, uma dupla de dourados e outros dois que agora, infelizmente, não consigo lembrar. Porque faz mesmo algum tempo que todos eles morreram, à exceção de um dourado, que vive debaixo da ponte de mentirinha e quase nunca sai de lá.

A ponte fica no fundo do aquário que, junto com a dezena de peixinhos, ganhei de presente de aniversário há três anos. É pequena, mas, durante o dia, quando a janela permanece aberta e um bocado de luz entra no quarto, a sombra projetada sob a ponte acaba virando uma espécie de esquina mal iluminada. Está a poucos centímetros da garrafa com mensagem e da touceira verde de plástico com flores vermelhas (nunca gostei de mergulhadores submersos presos a um cabo).

Resumindo, se pudéssemos imaginar o aquário como uma metrópole, aquele seria o ponto ideal para que criaturas marginais e exageradamente enigmáticas se encontrassem sem despertar muita atenção.

Faça chuva ou sol, é nesse pedaço que o único sobrevivente da peixarada passa a maior parte do tempo. Imóvel, entocado no canto escuro do artefato de vidro, parece ter desenvolvido algum complexo, um sentimento de culpa ou de perseguição. Afinal, se todos os outros, um dia, apareceram mortos, boiando ou presos a algum búzio do aquário, o que o faria acreditar que ele não seria o próximo?

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d