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Parede com retrato (passeio II)


No caminho há tanta coisa que, quando menos se espera, caminhar torna-se exatamente seu oposto, que é não caminhar, de tanto que se para a cada passo dado, de tanto que se olha por entre janela e porta e brecha de portão, bem mais que desníveis de rua e irregularidades de calçada.

A vida alheia, vida dos outros, vida de quem não se imagina semelhante, proximidade de meia parede, parede e meia, então é o susto um susto?

É o susto, do susto se vive boa parte do tempo e ainda bem que é assim do contrário, vejam só, em não havendo o susto, aquela casa do lado da sombra toda repleta de porta-retratos, ela disse é desse jeito que é na casa da mãe, ela gosta de espalhar retratos da gente quando éramos todos pequenos e brincávamos juntos no quintal, na área, em qualquer lugar que fosse, esses retratos estão por todo canto, a evolução de uma franja aparada, a permanência das covas no sorriso, a emergência de um nariz mais arredondado, a altura ganha dos 11 aos 14 que, de repente, estaca.

As constâncias e contingências.

Está tudo ali enquanto andamos, ela até anotando números de apartamentos pra alugar, eu mais preocupado com ranhuras, frestas, espiar o que vai na cadeira de balanço balançando na sala escura num final de tarde na rua tranquila da cidade litorânea.

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