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Cúmulo da noite


Ontem foi um dia especial, embora domingo, embora cheirasse a segunda-feira a partir do meio-dia, as horas cumulosamente arrastando-se uma ao encontro da outra, eu nesse meio-dia sem medo algum de que as coisas pudessem dar errado, afinal as coisas dão errado quer queira quer não, de modo que não convém preocupar-se excessivamente com coisas autônomas, tais como estrelas, espaço, música, abismos, doenças, morte.

Tais como amor, o amor.

Amanhã, que é hoje, posso acordar tarde se quiser, e de fato até quero, mas talvez o melhor para mim neste momento específico da vida humana em pleno começo de uma nova década em um novo século repleto de gênios ricaços, o melhor talvez seja continuar vendo o Crazy Horse tocar na TV enquanto a noite no terreno baldio cobre plantas e sacos de lixo amarrados com um nó bem dado e adiar o quanto for possível a pretensão de disciplina.

Ontem mesmo disse pra ela, acho que minha vida precisa de um pouco de disciplina, todo esse tempo, todas as horas livres, todas as formidáveis horas livres.

Elas são pavorosas.

A noite do terreno baldio passa bem devagar enquanto as primeiras horas da manhã já se formulam em qualquer canto. Convém não levar nada a sério, exceto por algumas coisas. O tipo da coisa que merece ser levado a sério é a comida que se come.

Aos bocados.

Crazy Horse, aí vou eu.

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