Você já tomou café, fumou, ligou e desligou o computador, viu trechos de filmes, um capítulo inteiro de Dexter, uma cena de CSI enquanto comia pedaços de frango e abocanhava garfadas de arroz e macarrão, massageou o próprio pé inchado depois de uma torção jogando bola no último domingo, escovou e reescovou os dentes, penteou os cabelos, checou o avanço implacável dos fios brancos sobre os pretos e refletiu por um ou dois segundos sobre a tristeza da condição humana.
Você somou as contas do mês, diminuiu tudo do salário e remanejou sobras, ou achou que estivesse remanejando. Você encheu as garrafas, regou as plantas e polvilhou o aquário com ração para o único peixe, um dourado. Você dobrou as toalhas, cogitou rever a saga de Guerra nas Estrelas do início ao fim, mas a ideia logo lhe pareceu exageradamente aborrecida.
Quase desesperado, você acionou o pai, a namorada, acionou também a mãe, disse que sentia um enorme desassossego desde as primeiras horas da manhã e que nada do que fizesse conseguia aplacar minimamente essa coisa atravessada na garganta feito bêbado na rua. Eles lhe pediram calma, paciência, disseram que era natural que se comportasse dessa maneira. Eles se mostraram estranhamente compreensivos, e isso o deixou ainda mais inquieto, predisposto a buscar respostas para o móvel que havia sido mudado de lugar no seu mundo sem que o proprietário – VOCÊ! – fosse avisado com antecedência.
Já cansado, você deitou, cobriu-se com o lençol. Depois ficou com uma parte dos pés à mostra e em seguida o tronco. Menos de cinco minutos haviam transcorrido e o seu corpo recebia a luz pegajosa da lua, derramada aos bocados através da janela.
Você levantou, pendurou-se na grade do corredor do condomínio, mirou o escuro do outro lado da rua, as janelas dos prédios vizinhos, a coruja, os ratos, o choro do recém-nascido, você inventariou absolutamente tudo que podia abarcar numa única passada de vistas na paisagem.
Você tentou tudo, enfim. Ou quase tudo.
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