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Praia


Então era isso que vinha pensando durante a semana inteira e que agora, não por estar rente à água, mas por haver chegado o momento de transbordo, o instante em que as barreiras se aniquilam por necessidades íntimas inexplicáveis, despencando sob efeito dominó, agora os guardados de dias e dias se precipitavam.

Caíam um a um feito despojos arrebatados na passagem das tropas inimigas. Pousavam aos pés, sorriam de volta, e eram suas memórias as coisas melhores que tinha. Castelos montados há anos transmutando-se sob ordens que não emitia, formando desenhos que não reconhecia.

Mas admirava o resultado final, tinha de confessar. Ela entrava com as peças, alguém com a imaginação.

Não há enigmas, chegou a considerar, enigmática enquanto percorria a areia com o dedão do pé, o corpo quase seco, salgado, o short branco prestes a ser beijado por alguma onda mais forte, o top do biquíni já sobrepondo nova marca de bronzeado ao usado há dois meses. Por cima do óculos de sol acompanhava qualquer coisa mais pra dentro do mar, um surfista em aprendizagem dando rabanadas nas ondas, alguém que nadasse de modo afoito, confiante porém nas próprias braçadas.

Na própria capacidade em manter-se vivo a despeito dos apelos.

Ela continuava como estava, sentada, as pernas longas estiradas, o torso alvíssimo inclinado, os cabelos arrematados em touceira. De longe seria confundida com quê? E o helicóptero que agora sobrevoava a praia, como a veria? Crianças pulavam, corriam, molhavam-se com estardalhaço, dando com as plantas dos pés nas piscinas que se formavam ali. Essa magreza toda metida em camisas e calções cheios como balões à medida que entram na água.

Não sem surpresa, os guardados da semana vieram. Ora aos borbotões, ora calmamente, mas é certo que vinham: um rosto, cheiro, cor, silêncio. Os anos, os dias, as horas, cada coisa enxertando-se na outra, engrossando a narrativa e tornando-a difícil de ser resumida a quem lhe perguntasse no que andara pensando esses dias todos.

Disfarçava aquecendo-se, agora mais as costas, depois os braços, que não queria ter duas cores para o resto da vida, fingia normalidade afundando os pés, sacudindo os cabelos.

Vinha assim suave, dolorido no varejo e cômico no atacado. Ridículo em perspectiva. Pois era de tal forma que enxergava tudo, acalentando um gomo daquela dor boba debaixo do braço. Deus, Deus, falou de si pra si, até divertindo-se.

Deus, deus, disse sem dar continuidade.

Ergueu-se a custo, apoiando-se num dos punhos de encontro à areia, levantando-se como se um cordame atirado do teto de nuvens e luz a puxasse aos bocados. O sol tinha queimado em desconforme, não havia jeito. Entortou a boca em ligeira reprovação, gesto desses adquiridos pra vida toda. O avô ria-se só de imaginar as meninices.

Talvez o mar, aquele chacoalhar d’água haja interferido, tocando de leve alguma tecla mais escondida, a mesma tecla responsável por comunicar dutos incomunicáveis. Não sabia direito. Talvez fosse isso, mas agora devia retornar, sentar à barraca e devorar patinhas de caranguejo.

Fez o caminho de volta ainda mais devagar, margeando as ondas que rebentavam aos pés. A praia tinha tanta gente, de repente desviava de uns e outros, forçada a chutar a bola de futebol.

Bem lá no final via as eólicas girando quase como a parar. Verdade é que a velocidade, vista assim distante, enganava.

Estava enganada.

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