Pular para o conteúdo principal

O escalpo da maçã


O escalpo da maçã obedeceu aos mesmos critérios de higiene e precisão que são utilizados nos demais escalpos, da pele, do couro cabeludo, do desejo, das cutículas e dos assoalhos dos carros, de modo que, ao final, tendo cada participante executado sua função com rigor e cada espectador da cena visto e revisto por que a remoção da superfície incômoda torna-se uma tarefa desde já inadiável, optou-se por não postergar sem necessidade a atração principal da noite.

Sob aplausos, fez-se entrar IFi, donzela pequena, magra, pele clara bastante inadequada ao escalpo brilhando quando restos de luz branca eram balançados por homens no topo das gruas. Os cabelos soltos, boca mortiça, olhos firmes, pernas entreabertas, o sexo levemente encoberto por vasta porção de pelos. Havia incorporado o show, e se dispusera ao escalpo.

É fácil explicar: sendo a pele finíssima, uma camada de nada colada ao osso, sem gordura que aceite passagem da lâmina, o normal seria que IFi fosse educadamente dispensada do rito. Mas ela insistiu.

Despiu-se ainda no camarim, encarou o produtor do espetáculo e disse qualquer coisa sobre jardinagem. O pedido foi aceito, não sem recomendações: caso sentisse qualquer fatia de dor acima do previsto em contrato, acionasse a sirene, cujo botão escondia-se sob o braço da poltrona de couro vermelho.

IFi sabia de tudo isso, mas preferiu não pedir socorro.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d