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Estranhas formas geométricas

Não agora, não depois, mas talvez haja esse momento específico, não um ponto único sobre o qual deitamos o olhar e reconhecemos de alguma maneira que, dali em diante, as coisas se tornaram elas mesmas, e nesse elas mesmas, se perceberem direito, cabe um exército inteiro de coisas não catalogadas que vão de sensações a pessoas, passando por meros objetos do cotidiano, fábulas ignoradas por anos e anos, como o fundo do closet, e até livros escondidos no armário da mãe podem servir de ligação entre um mundo estranhamente adolescente e este outro, ocupado agora por horrorosas conexões.

Horrorosas e absurdas conexões.

Estamos falando de matemática? Não me digam isso, crianças. Estamos falando de poeira estelar, explosões, formas sedimentadas por bilhões e bilhões de anos, espécies inteiras que ficaram pelo caminho, guerras encarniçadas, sexo, reprodução, morte, sangue, apocalipse, traição, ciúme, doença, paixão, medo, morte novamente, envelhecer, apodrecer, perder, ganhar, entregar os pontos.

Estamos falando de tudo.

Retomando, duvido que possamos identificar o ponto, esse para o qual nos viramos sempre que qualquer coisa ameaça a casa infantil montada na sala ou no quarto, feita de lençóis, os mesmos usados por nossas irmãs e primos, quadriculados, motocicletas, brinquedos, bonecas, nosso telhado é tão sensível quanto o de uma casa de bonecas ou quanto o telhado da casa de enfeite, mentirosa, que montávamos enquanto nossos pais se divertiam fazendo o que não sabíamos que faziam.

Dito isso, peço licença para exercer o que, na infância, era uma nebulosa de possibilidades, mas agora se converte em signos ordinários, movimentados por demandas ordinárias, que dão vazão a desejos ordinários, é assim que a roda gira, sempre e sempre. Um mundo inteiro feito para coisas estúpidas. Digo estúpidas sem peso na consciência.

E chega de eu, estou anotando cada frase dita por ela durante aquela conversa que tivemos ainda outro dia no café da livraria, de modo que o pronome requer cuidado, ele, ela, nós.

Não há modo de saber nada, e, para piorar, não sabemos ao certo se acreditamos nisso.

Boa noite, me disse.

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