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Medo da queda, do baque surdo da queda

Um dia a personagem amanheceu desejando convencer-se de que estava mal, mal das pernas, dos nervos, mal da boca, do peito, mal dos braços, mal dos sonhos, mal dos lábios, do pescoço, mal do umbigo, das coxas, dos pés, mal das costas. Mas não conseguiu. Não de todo, porque amar é realmente difícil, nem todos amam e, entre os que amam, há mesmo aqueles que se desperdiçam, se distraem enquanto o amor, esse sentimento volátil, esse sentimento concreto mas volátil, concreto, volátil mas também caprichoso, esse mesmo sentimento chamado enigmaticamente amor dobra à esquina procurando outro endereço.

Então, por ser triste, por querer ser triste, por não querer mas ser triste ainda assim a contragosto e também por ler tanto e tão depressa e aspirar ardentemente a qualquer condição que a possa fixar para sempre num sopé de pedestal, ela acorda e se programa para ser alegre

Mas só consegue enlutar-se.

Só há o rastro cego dos dias, as roupas sujas, a alegria da família, o curso superior, o namorado, o trabalho, a bolsa da faculdade, mas ela, ela assim entende que tudo mesmo tudo embora tudo entretanto ela entende que a liberdade era pouca, que o que queria fundamentalmente era alojar-se no espaço de uma canção do Chico, num verso de Gullar, numa página de Clarice.

Ou da Maria Rita. Ou dos Mutantes. Tinha escolhas, ela pensava. Não queria nem temia, mas tinha. E as escolhas a tinham.

Mas ela não sabia, não sabe. Tem medo? Por quê?, interroga-se de frente para o espelho, olhando no retrovisor do carro dele, vendo-se no reflexo da vitrine da loja de roupas, porque mesmo nessas horas o instante é fugaz e a alegria de deitar-se dura exatamente vinte e cinco segundos, que nunca, jamais, em qualquer circunstância são apenas vinte e cinco segundos mas trinta ou quarenta ou duas horas ou uma eternidade encharcada de certezas.

E ela não sabe o que fazer. Quer ir, quer sair, mas teme escorregar enquanto olha para trás se certificando de que tudo, tudo mesmo, vai ficar bem.

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