PRIMEIRA ETAPA DO TRÍDUO PASCAL, PERÍODO QUE SE ENCERRA NO DOMINGO DE PÁSCOA, A SEXTA-FEIRA SANTA É MARCADA POR SACRIFÍCIO, JEJUNS E MEDITAÇÃO. À ESPREITA, O ETERNO RISCO DE INCORRER NO PECADO DA GULA
HENRIQUE ARAÚJO>>>ESPECIAL PARA O POVO
Antes, uma história rápida: há muito tempo – muito mesmo – um homem chegou a uma cidade e foi recebido com honras de líder, jogador de futebol e milionário – tudo isso junto. Não era nada disso. Na verdade, pouco se lixava para fama e poder. Entretanto, quando passava, as pessoas na rua o saudavam com galhinhos de planta. Tinham-no como alguém especial, alguém que poderia resolver grande parte dos problemas não apenas deles, mas de seus filhos, irmãos, sogros, cunhados, tios e tias, pais e mães. Era um homem de habilidades: podia curar doentes terminais, verter água em vinho e fazer transbordar de peixes um veio d’água antes estéril. Na cidade, esse homem reuniu amigos e conhecidos. Mesmo sob a mira do governo, esse homem caminhou, conversou e finalmente encontrou-se com doze deles. Algum tempo depois, nosso personagem morreria crucificado.
Ele é Ele: Jesus Cristo, o salvador. A cidade é Jerusalém. As pessoas na rua são os romanos. Os doze amigos são os doze apóstolos e a conversa que tiveram antes do trágico desfecho da história é mais conhecida como A última ceia. Finda a palestra com João, Jacó, Pedro e outros discípulos de primeira hora, Jesus foi traído por Judas Escariotes, levado pelos soldados romanos e supliciado. Carregou uma cruz, e, como a provar a superioridade moral do homem, morreu nessa mesma cruz sem negar a verdade que luzira a sua vida. Tinha apenas 33 anos. É exatamente por essa razão que hoje, Sexta-feira Santa, algumas centenas de anos depois, Antônio Ximenes, Francisco Ercílio e Evandra de Freitas padecem. Porque, antes deles, Ele sofreu. Na quinta-feira, lavou os pés dos discípulos. Na sexta-feira, foi morto. No sábado, subiu aos céus. No domingo, o dia do descanso, ressuscitou.
Antônio Ximenes, 65 anos, é diácono da igreja católica. Sob sua tutela, está a área pastoral do bairro Canindezinho. Hoje, o religioso está sem comer desde as primeiras horas do dia. Não viu ovos de páscoa ou pães de coco. Passou longe de bacalhoadas, que condena: são extravagâncias. “Os oportunistas aproveitam a Semana Santa pra vender esse peixe caríssimo. É exploração. Cadê a caridade?”, interroga. Em vez de bacalhau, Ximenes receita baião de dois com ovo. “Seria muito mais rico. A bacalhoada é o preço de quem não quer ser humilde, do egoísmo.” O diácono deve manter-se assim, irredutível, até a sexta-feira virar sábado.
Retidão na hora do almoço
Moradora do Parque Jerusalém, a dona-de-casa Evandra de Freitas, 54 anos, condena a fome desvairada que macula a celebração da Semana Santa. Para refrear os ânimos daqueles que não veem a hora de sentar-se à mesa e devorar postas de cavala em dois tempos, dona Evandra, que é ministra da palavra, recomenda: muita oração, meditação e caridade. Para ela, o momento é de interiorização. “Nesse período a gente está seguindo os passos de Jesus. E como ele estava naquele momento de dor e de sofrimento...”, sugere. Dona Evandra refere-se aos quarenta dias de fome e sede que Cristo amargou no deserto. Eles correspondem à quaresma, que tem início na Quarta-feira de Cinzas e se encerra no Domingo de Páscoa.
Mas nem sempre foi assim. Há dez anos, quando dona Evandra não havia sentido ainda os mistérios da doutrina católica, essa rotina rigorosa tinha um desvio mundano. Dona Evandra começava bem: jejuava até o meio-dia. O problema sobrevinha na hora do almoço, quando, pratos postos, a gula corria sem peias. “Eu compensava o que não tinha comido. Muita gente faz isso”, constata. Hoje, a ministra concede-se apenas o essencial. Afinal, ela pretende suportar o ritmo alucinado de missas, caminhadas e sessões da Paixão de Cristo, ensaiadas durante o ano inteiro e representadas nos quatro cantos do País. “Pela manhã, tomo café com leite. Depois como um peixe, um pão. Às 18 horas, posso comer um feijãozinho, um peixe de novo. Tudo muito pouquinho.”
Ex-comerciante, Francisco Ercílio Ferreira, 49 anos, também é ministro da palavra. Costuma encontrar dona Evandra nas sessões destinadas ao cultivo do casamento. E a semelhança para por aí. Se o assunto é sacrifício, ele tem visão própria. Por exemplo: carrega uma pulga atrás da orelha se lhe convidam para caminhadas cristãs. “São apenas fantasia.” Na Sexta-feira Santa, porém, o ministro – no mundo espiritual - e gerente do mercadinho Ponto Certo – no mundo secular - recomenda abstinência moderada. “Jesus quer o coração, não quer o sacrifício.” Casado há 27 anos com Marlene Costa Ferreira, Ercílio tem apenas um muxoxo: hoje, um dia santo por excelência, vai ter de bater o ponto no trabalho.
EMAIS
A SEMANA SANTA
Segundo o diácono Antônio Ximenes, a Semana Santa é um período “marcado pela penitência. As pessoas se confessam. É o ponto alto para a confissão. É também o tempo em que se celebra a paixão, a morte e o ressuscitamento de Cristo. E essa paixão passa por esses três dias. Quinta-feira, a última ceia. Sexta-feira, o dia em que Cristo assassinado. E sábado, quando ele ressuscitou dos mortos. E durante toda a Quaresma se fazem sacrifícios”. Outro aspecto que fundamenta a liturgia cristã na data é a conciliação. “É um ponto importante. Principalmente durante a Quaresma. Ouvir os necessitados. Ouvir as dores das pessoas marginalizadas.”
Ainda de acordo com Ximenes, o consumo de carne vermelha está fora de questão. A carne branca, porém, goza das brechas que existem mesmo nos textos sagrados. “A igreja orienta que a carne branca poderá ser consumida. Porque não é expressamente proibido. Ela não diz claramente: coma peixe. O peixe porque é um elemento branco”, orienta.
A Semana Santa tem início no Domingo de Ramos e segue até o Domingo de Páscoa. Ela marca a paixão de Cristo, ou seja, as fases da via-sacra, a última ceia, a cerimônia do lava-pés, o luto pela cruficação e alegria com a volta do Salvador do mundo dos mortos. É tempo de renovar a fé na doutrina cristã e refazer os laços que atam os homens. Para os judeus, a Páscoa celebra a libertação de seu povo da escravidão no Egito e a passagem para a Terra Prometida. Para os católicos, maioria no Brasil (segundo estimativas do Vaticano, são aproximadamente 155 milhões de fiéis apenas no País), a passagem do mundo dos mortos para a vida eterna. É um momento de pesar pela morte de Cristo e de amor por seu sacrifício em favor da humanidade.
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