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O SOM QUE VEM DO CORAÇÃO

Há uma semana. Uma semana atrás não havia nada nos ouvidos. Hoje, esse barulho infernal. Uma broca de dentista gigante atormentando as virgens do bairro?

Mas, eu não sou mais virgem. O que é isso? Uma brincadeira sem graça?

Brocas não fazem tanto barulho. Começa às seis da manhã, termina às seis da noite. De 6 às 18, um sacolejar de moléculas sonoras invade as casas – pequenas, grandes, médias, enormes. Desperta sabe-se lá que sorte de ondas de irritabilidades em mães desesperadas.

Quantos meninos terão apanhado desde a última segunda-feira por causa do barulho desgraçado que não cessa? Quantas meninas terão sido despachadas como criminosas de guerra para o quarto ou, pior, para a pia da cozinha, espécie de Guantánamo da casa?

Não sei. Apenas observo os fatos do cotidiano e os reporto depois sob forma de relatos sem forma nem graça. Apenas os transporto para o mundo dos que sabem alguma coisa sobre sons infernais.

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