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ResenHA

A VOLTA AO MUNDO EM 80 ANOS

OCTOGENÁRIO A PARTIR DE HOJE, TINTIM, O MAIS FAMOSO REPÓRTER INVESTIGATIVO DO MUNDO DOS QUADRINHOS, TEM SUA PRIMEIRA E ÚLTIMA AVENTURA LANÇADAS PELA COMPANHIA DAS LETRAS

HENRIQUE ARAÚJO>>>ESPECIAL PARA O POVO

Entre os planetas Marte e Júpiter, há uma esfera descoberta ainda na década de 1980 por cientistas da Sociedade Belga de Astronomia. Como ela se chama? “Planeta Hergé”. A homenagem é índice do status alcançado pelo quadrinhista belga Remi Georges (1907-1983), criador de um dos mais adorados personagens da história das HQs, o repórter Tintim. Acompanhado sempre de seu cãozinho Milu, um fox-terrier esperto com vocação detetivesca, Tintim completa hoje, 10 de janeiro, oito décadas de vida. Em comemoração, a editora Companhia das Letras lança duas grandes cerejas de um bolo que começou a ser fatiado há três anos, com a estréia desse herói enviesado em terras brasileiras. As duas histórias publicadas - Tintim, repórter do Le Petit Vingtième, no país dos sovietes e Tintim e a Alfa-arte – constituem os fechos de um ciclo. Além de inéditas no País, trazem exatamente a primeira e a última aventuras do personagem, que é símbolo de curiosidade, coragem e ingenuidade. E também da luta política travada entre nações nos quatro cantos do mundo.

Ao todo, foram 24 volumes contendo as aventuras de Tintim e sua trupe. Entre aliados e inimigos recorrentes, figuram na coleção um ex-oficial da Marinha e grande bebedor de rum (Capitão Haddock); uma dupla de policiais atrapalhada (os “gêmeos” Dupont e Dupond); um cientista louco que lançará Tintim à Lua (Trifólio Girassol); uma cantora lírica (Bianca Castafiore); e, finalmente, mas não por fim, um produtor de cinema e precursor dos grandes chefes do tráfico internacional (Roberto Rastapopoulos). Em Tintim no país dos sovietes - lançada originalmente em 1929 - porém, o repórter combate sozinho. Quer dizer, acompanha-o Milu, que vale como os braços e pernas direito e esquerdo do jornalista. Contra ambos, uma horda de comunistas.

É que, além do traço característico, do humor e das viagens aos lugares mais exóticos da Terra, outra marca dos quadrinhos de Hergé (seu nome é a junção sonora das iniciais R.G. em francês) é a pesquisa histórica. No final da década de 1920, por exemplo, que outro artista reuniria coragem e inteligência suficientes para enviar um repórter ao País Vermelho e denunciar alguns dos tropeços do regime comunista? Hergé fez isso. Tinha 22 anos. “(O quadrinho) É uma reportagem sobre o comunismo. Ele trata os comunistas como bandidos, que enganam e roubam. Ficam fingindo que estão fazendo fábricas, mas estão roubando o trigo para manter o regime”, detalha Thyago Nogueira, editor responsável pela coleção. Segundo Thyago, essa é outra variável definidora da obra de Hergé: a política. A partir das aventuras de Tintim, o conflito entre superpotências – notadamente entre Estados Unidos e União Soviética – salta aos olhos do leitor, que também pode enxergar nas histórias traços de eurocentrismo e de preconceito racial. “Ao longo do tempo, porém, ele foi acrescentando elementos mais de aventuras”, mas sem perder a “carga política e a pesquisa apurada”.

Em Tintim e a Alfa-arte, o repórter investiga o mercado de quadros falsificados. No lugar de terroristas ou inimigos do estado, alguns traficantes. O livro apresenta o roteiro da história, que nunca foi concluída. E também alguns esboços preparados por Hergé, que morreria em 1983. Antes, portanto, de colocar um ponto final na trama. Entretanto, o prazer pode residir também na descoberta de alguns detalhes. Por exemplo: como o quadrinhista solucionava os problemas que ele mesmo criava? Como diagramava as aventuras? Como escolhia os vilões? Para Thyago Nogueira, as duas histórias são “a cereja do bolo” da coleção. “Nós começamos a lançar os quadrinhos em 2005, mas guardamos o melhor para o fim.”

SERVIÇO:

Tintim, repórter do Le Petit Vingtième, no país dos sovietes (Companhia das Letras, 144 páginas. Preço: 42) e Tintim e a Alfa-arte (Companhia das Letras, 62 páginas. Preço: R$ 32).

Quem foi Hergé

Remi Georges nasceu em 1907, na Bélgica. Na escola, o criador de Tintim, um repórter investigativo gente boa, era conhecido por seus colegas como o “raposa curiosa”. Antes de se dedicar inteiramente aos quadrinhos, Remi trabalhou como auxiliar de assinatura no jornal Le Vingtième Siècle e como redator-chefe no Petit Vingtième. No dia 10 de janeiro de 1929, Hergé lançaria a primeira aventura de Tintim. Nela, o personagem viaja à União Soviética. Acompanhado do seu cão Milu, ele desmascara o regime comunista. Depois do grande sucesso de Tintim, suas histórias foram se tornando mais complexas. Outros personagens entraram em cena. Sob a ocupação alemã na Bélgica, ainda durante a II Guerra Mundial, Hergé escreveria a história O caranguejo das tenazes de ouro, publicada no jornal Le Soir. Por ela, Hergé seria acusado de colaborar com o nazismo. Remi Georges morreu em 1983.

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