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Dialética do fã

  Fã ou “hater”? A pergunta embute de saída essa dualidade a partir da qual se organizam as relações nas redes e para além delas, ou seja, uma troca que se dá em torno de um binarismo cujos pontos cardeais são, de um lado, o apoio incondicional e, do outro, o ódio cego. Do amigo, do colega de trabalho e mesmo das relações amorosas exige-se hoje essa espécie de contrapartida afetiva que prevê um vínculo sem arestas, feito todo com base numa adesão total que não aceita dissidência nem o mais remoto traço de crítica. É-se fã de alguém, e ponto final, não havendo a possibilidade de que nessa relação haja espaço para a nuance ou sentimentos conflitantes. O conflito, por si, é negativo, contraproducente, pouco valorizado e, sob o ponto de vista da gestão dos afetos, algo a ser evitado porque desequilibra os chacras. Não é por acaso que a palavra, antes limitada para se referir a um artista ou clube de futebol, ou qualquer outra coisa diante da qual uma pessoa se toma de absoluta devoção,...

Os ianomâmis e o cartão de Bolsonaro

Não apenas as imagens dos ianomâmis desnutridos causam impacto e tristeza, além de revolta e vergonha, como também o contraste entre as fotografias dos povos sem assistência médica e alimentar e as notícias sobre gastos no cartão corporativo de Jair Bolsonaro se revela cruel, mas não casual. Divulgadas praticamente ao mesmo tempo, trata-se de duas faces da mesma moeda, o genocídio de indígenas e a política em proveito próprio e dos seus – seus familiares e seus aliados, entre os quais o garimpo ilegal. Em quatro anos, Bolsonaro levou a cabo esse plano de morte, pelo qual deve ser investigado. Sua obra é essa que vemos estampada agora nas capas dos jornais, correndo mundo: corpos reduzidos a pele e osso, crianças maltratadas, um ecossistema e suas populações predados sob estímulo do chefe da nação. Enquanto isso, o então presidente alimentava-se de cortes nobres de carne, picanha e outras, sovando-se de bebidas lácteas bem ao seu feitio e refestelando-se com o que há de melhor nos cômod...

Ainda sobre a foto da “Folha”

  Digo ainda sobre a foto da “Folha” certo de que já se falou o bastante sobre a imagem de Lula atrás de uma vidraça estilhaçada, mas também disposto a colaborar com essa superabundância analítica que é uma marca das redes, em que todos se encontram em condições de avaliar qualquer coisa a qualquer tempo, mesmo não estando. A imagem: Lula não apenas atrás da vidraça quebradiça, mas performando um papel curioso, que o coloca numa situação na qual ele mesmo não se pôs, ou seja, a de se portar com leviandade ante o momento de grande tensão que foram os atos golpistas de 8 de janeiro deste ano. Entendo por leviandade o repertório gestual que integra o quadro em que o presidente aparece, formado basicamente por elementos que sugerem descontração e relaxamento mesmo sob a ameaça exposta – uma ameaça escancarada a sua vida que, a rigor, não houve naquele dia? Me refiro ao Lula ajeitando o nó da gravata, exibindo um sorriso que destoa da postura que o presidente adotou ao lidar com as r...

Museu do golpe

  No começo apenas de brincadeira e depois a sério, me veio à cabeça a criação de um “museu do golpe”, espaço que se dedicaria não ao restauro de peças arruinadas pelo fascismo nacional responsável pela blitzkrieg tabajara do dia 8 de janeiro, mas a sua preservação tal e qual se encontram. Aquele relógio imperial do século XIX, por exemplo, cujo valor histórico exorbita o conserto de sua mecânica, seria então mantido como se vê hoje: inutilizado pelo vandalismo tupiniquim durante a invasão dos Três Poderes. De modo similar, outros dispositivos e artefatos destroçados, de obras de arte a mobília, passando por esculturas e a réplica da Constituição de 88, estariam a salvo de sua recuperação total ou parcial, sendo conservados quebradiços ou inservíveis para mais nada, sequer para a apreciação. Assim, o quadro de Di Cavalcanti, estimado em cerca de R$ 8 milhões e perfurado em seis pontos, continuaria como está: trespassado, danificado, num sinal de que algo ou alguém o atravessou no B...

"The last of us": a série e o jogo

  Voltei a jogar “ The last of us ” (no PS4) como preparação para a série da HBO depois de uma década do lançamento do game para o PS3, no já antediluviano ano de 2013 . Não sei se foi uma decisão razoável, uma vez que inevitavelmente, como fã do jogo, farei comparações entre as produções enquanto assisto, mas era o que tinha vontade de fazer no momento, por dois motivos: estou duplamente de férias (do batente e da faculdade) e minha filha queria conhecer o original. De modo que tenho avançado nos últimos dias em jornadas de uma hora ou pouco mais do que isso, quase sempre depois de leituras mais áridas no processo de escrita acadêmica que tem exigido bastante energia e tempo, quando tudo que queria era apenas abrir uma cerveja e me estirar numa cadeira tomando sol em algum lugar do litoral do Ceará. Sobre a série. Não estou propriamente receoso em relação ao resultado, a cargo de um diretor cujo trabalho mais recente é bem-sucedido (“Chernobyl”) e que ainda conta com o auxílio pr...

Dentro da zona de conforto

  Entre os mantras da retórica corporativa, não há talvez expressão mais detestável do que essa que nos pede para “sair de nossa zona de conforto”. Primeiro porque ter uma zona de conforto é, em si, um conforto e um privilégio pelos quais a maior parte de nós trabalha a vida toda, de maneira que abrir mão dela tão facilmente assim, sobretudo quando levou tanto tempo para conquistá-la, não parece algo razoável. O segundo motivo pelo qual essa frase é abominável diz respeito ao fato de que, como consequência lógica disso, nem todo mundo tem uma zona de conforto a que se apegar, na qual permanecer durante o dia e também de noite, às vezes no final de semana, como uma casa de praia num paraíso do litoral cearense.  Para a maioria das pessoas, a única zona que existe é a do desconforto e do risco, ou seja, a da redução de expectativas e de convivência com um grau nada saudável de incerteza em relação ao próprio futuro e ao de sua família. Apenas alguém cuja vida se deu em conforto ...

Patologia e astrologia

  Hoje em dia tudo é patologizado ou astrologizado, ou seja, nada escapa a um ou outro filtro, mas o que quer dizer exatamente isso? Que a patologização é o procedimento por meio do qual a conduta social é reduzida à doença ou explicada integralmente por ela, de modo que o arbítrio do indivíduo se dilua ao ponto de restar somente esse vetor orgânico ou biológico que incide sobre as decisões pessoais. Não é que fulano ou beltrana sejam assim, mas a doença os faz assim. Há um enquadramento patológico diante do qual é preciso compreender o que fizeram. A doença os explica, os justifica e, sob certo ângulo, os redime. Cada vez mais o rol de patologias se imiscui nessas relações cotidianas, ampliando-se progressivamente e abarcando um sem número de situações, das quais mantenho prudentemente certa distância, evitando nomeá-las explicitamente para não parecer que aponto o dedo para ninguém, o que inclui a mim mesmo. Não por acaso, a astrologização talvez tenha de ser encarada (é uma qu...