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Dentro da zona de conforto

 

Entre os mantras da retórica corporativa, não há talvez expressão mais detestável do que essa que nos pede para “sair de nossa zona de conforto”.

Primeiro porque ter uma zona de conforto é, em si, um conforto e um privilégio pelos quais a maior parte de nós trabalha a vida toda, de maneira que abrir mão dela tão facilmente assim, sobretudo quando levou tanto tempo para conquistá-la, não parece algo razoável.

O segundo motivo pelo qual essa frase é abominável diz respeito ao fato de que, como consequência lógica disso, nem todo mundo tem uma zona de conforto a que se apegar, na qual permanecer durante o dia e também de noite, às vezes no final de semana, como uma casa de praia num paraíso do litoral cearense. 

Para a maioria das pessoas, a única zona que existe é a do desconforto e do risco, ou seja, a da redução de expectativas e de convivência com um grau nada saudável de incerteza em relação ao próprio futuro e ao de sua família.

Apenas alguém cuja vida se deu em conforto (material, cultural, físico e espiritual) ou goza dessa condição de maneira permanente, seja por mérito próprio ou não, a ponto de naturalizá-la e universalizá-la, iria sugerir a outra pessoa que ela deveria deixar de lado algo remotamente parecido com isso e investir não na ampliação de seu conforto, mas na instabilidade e na carência. 

É mais ou menos isso que se pode entender de frases em tom motivacional proferidas por lideranças empresariais ou figurões do mercado ou do ramo das big tech, sempre que abrem a boca para recomendar a seus empregados que saiam da zona de conforto. 

Logo, falar em zona de conforto a quem vive desconfortavelmente soa, no mínimo, deselegante, para não dizer francamente acintoso e também deplorável.

“Olha, mas a zona de conforto é uma metáfora”, dirá o empreendedor mais sabichão na tentativa de fazer passar gato por lebre no escambo semântico do neoliberalismo em fim de festa que se tornou o mundo hoje em dia.

No fundo, o que ele está afirmando com todas as letras é que a precariedade material é resultado de uma aceitação passiva das pessoas e que toda mudança está condicionada ao reconhecimento tácito de que uma nova atitude é o passo inicial para a melhoria de vida.

Em síntese, um voluntarismo quintessencial como filosofia de vida.

Ou seja, o problema não é sistêmico nem global, tampouco depende de variáveis definidas numa escala macro por lideranças ou estruturas cujas decisões incidem sobre as relações. O problema é pessoal.

Bem entendido, o problema é seu, o que significa não apenas que você, enquanto pessoa, é responsável, mas que você é o único responsável caso ainda não tenha conseguido chegar a uma zona de conforto da qual os que pontificam sobre lições edificantes pedem agora que você educadamente saia.

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