Digo ainda sobre a foto da “Folha” certo de que já se falou o bastante sobre a imagem de Lula atrás de uma vidraça estilhaçada, mas também disposto a colaborar com essa superabundância analítica que é uma marca das redes, em que todos se encontram em condições de avaliar qualquer coisa a qualquer tempo, mesmo não estando.
A imagem: Lula não apenas atrás da vidraça quebradiça, mas performando um papel curioso, que o coloca numa situação na qual ele mesmo não se pôs, ou seja, a de se portar com leviandade ante o momento de grande tensão que foram os atos golpistas de 8 de janeiro deste ano.
Entendo por leviandade o repertório gestual que integra o quadro em que o presidente aparece, formado basicamente por elementos que sugerem descontração e relaxamento mesmo sob a ameaça exposta – uma ameaça escancarada a sua vida que, a rigor, não houve naquele dia?
Me refiro ao Lula ajeitando o nó da gravata, exibindo um sorriso que destoa da postura que o presidente adotou ao lidar com as relações estremecidas entre Governo e Forças Armadas e militares nos dias que antecederam e que se seguiram ao episódio. Um Lula algo galhofeiro, inadequado, desajeitado nessa função que o fizeram cumprir na foto.
Lula de certo modo ostentando um ar triunfal a despeito da tentativa de golpe havida de fato, e novamente a imagem projetada impregnando-o de um valor ao qual ele não correspondeu.
Em resumo, a imagem em si carregando uma impropriedade política evidente porque não há – não houve nem haverá – esse instante em que o chefe do Executivo se refugia de um desgaste superlativo tendo por anteparo uma vidraça – realmente trincada, prestes a se partir, com um centro que coincide, não sutilmente, com o coração do chefe da República, figura máxima do poder democrático no Brasil.
Entende-se a intenção, mas, para efeito de leitura, de sua interpretação e ponderação, a intenção de autor ou de autora pouco importa.
E houve ainda quem dissesse que havia uma mensagem não de todo evidente na imagem, quando tudo nela grita um sentido, explicitando-o ali: Lula sorri diante da tentativa de ataque, Lula dribla o perigo, Lula vence e resiste.
Eis a leitura preferencial da fotógrafa, não sei se a do jornal – certamente não a do jornal, sobretudo um como a “Folha”, que não se prestaria a esse papel de servir uma foto (como chamar o resultado desse gesto autoral?) tão abertamente favorável a Lula caso a tivesse interpretado como desejava a fotojornalista.
E aqui se chega ao segundo ponto, qual seja, a publicação da imagem, estampada na capa do jornal ao lado de uma manchete em letras garrafais cujo conteúdo trata da presença de militares no governo.
Uma foto em jornalismo nunca é uma imagem no vácuo, está sempre cercada, ladeada por outros elementos com os quais estabelece conexões e dos quais muitas vezes depende para ter sentido pleno – um sentido jornalístico.
Em conjunto, foto e texto produzem um estrago que considero relevante, política e jornalisticamente, posto que seu estatuto de registro fotojornalístico é questionável e, em segundo lugar, porque sugere um ato (o de um disparo de arma de fogo?) que, mesmo mal-sucedido porque não chega a ferir Lula nem mesmo trespassar a vidraça, é profundamente violento.
Que a imagem exista, contudo, não é um problema, principalmente se deslocada do âmbito do discurso jornalístico e abrigada em espaço mais apropriado, tal como galeria ou outro lugar cuja natureza seja a de exposição de trabalho sem compromisso com uma factualidade da qual compete ao exercício profissional se aproximar.
Que a tomem como fotojornalismo, porém, constitui erro.
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