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Ódio criativo

Por engano, onde se lia ócio eu li ódio, e tudo se iluminou. De repente, as coisas passaram magicamente a fazer sentido, como numa transcendência do instante, clareando o derredor, um segredo que se revelasse mediante decifração. Na verdade, sempre desgostei do tal ócio, aquele postulado por um autor italiano e cujo sentido se aproxima desse tempo desprovido de nada ao qual se volta, gratuitamente, a contemplar a paisagem, o teto do quarto, a quina de uma estante da sala ou a ponta do dedão do pé. Não é que me parecesse de todo irreal. Estava mais para privilégio, um aristocracismo meio intelectual, meio classista que se supunha que estivesse ao alcance de qualquer um a qualquer hora, quando era exatamente o oposto: o ócio como subproduto da distribuição desigual das horas de labuta e de descanso. Primeiro me aborrecia e até irritava que alguém pudesse imaginar que um trabalhador tivesse seus momentos desse tipo de ócio apolítico, entre tantas tarefas a fazer, atribuições num dia rep...

Adiar começos

Estou adiando esses começos, trechos escritos mentalmente sobre os quais penso acrescentar mais alguma coisa, imperfeitos porque lhes falta algo que não sei o que é. Inícios de histórias que se recusam a virar coisa concreta, vivem no antes, imateriais. Uma insistência no pensado, no refletido, no cálculo que é pura sabotagem porque não conduz a lugar algum. E assim deixo para depois o que talvez merecesse existência agora, imperfeito que seja, desajeitado e lacunar, um objeto falhado de partida porque esse estágio no qual todas as dúvidas encontram suas respostas jamais chega. Escrever, de alguma maneira, é pôr em suspenso essa crença no domínio pleno sobre o escrito para além de certo conjunto de pressupostos teóricos e técnicos. Mas esse retrato, sabê-lo existir, estar acessível e pronto a toda leitura em qualquer tempo e por qualquer um, isso me dá certo medo. Deixar uma marca que não se apaga, um registro permanente de um estado de coisas num dado momento. Aquele era eu naquele ...

Correio

Não sou um grande leitor de newsletters, mas tenho assinado cada vez mais esse tipo de conteúdo. Curiosidade.  Gosto da ideia de recebê-lo na caixa de correio (eletrônica), à moda de uma carta. Tem um remetente, um destinatário (presumido), um assunto qualquer sobre o qual se deambula por um tempo que varia de autor para autor. É o mais próximo dessa experiência de intimidade na comunicação, a mensagem finalmente sendo despachada e recebida num horário qualquer, o gesto já antigo de uma troca que a internet havia praticamente sepultado.  Mas, assim como os mortos-vivos, que são metonímia dos tempos, as redes talvez tenham essa capacidade de fazer reviver, mesmo que a contragosto, o que se dava por finado.  Newsletter é o contrário do algoritmo, de conteúdo fabricado e rotinizado, resultado do cálculo que uma inteligência realiza para oferecer algo que ela supõe que nós gostaríamos de ler/ver/ouvir.  É uma coisa que escolhemos receber, uma interlocução que deliberadam...

Apartamentinho

  Li algo sobre pequenos apartamentos, gaiolas para a gente existir funcionalmente, reduzido ao movimento mais básico, o mesmo roteiro de ir e vir calculado em passos mínimos todo dia, sem desvio, sem diferenciação. Já morei num lugar assim, mas sem esse charme da boa localização, da áurea de bem imóvel ao qual se empresta um valor mais simbólico do que real. Meu apartamento era pequeno e distante, embora não de todo feio. Havia nele o ganho de estar perto do trabalho, e isso na época era suficiente, saber que a uma caminhada eu estaria em casa, ainda que a casa fosse como uma réplica do meu quarto de criança, com beliche e armário de brinquedos, onde agora eu tinha de acomodar fogão e geladeira, além de cama, mesa e essas coisas que acumulamos por todo o tempo. “Moradia mínima”, ouvi um consultor imobiliário falar enquanto explicava o boom de lugares cuja escala liliputiana ele declamava naturalmente, como um dado qualquer ao qual a gente já devesse estar plenamente acostumada, um...

Árvore que dá sombra

A foto de uma dessas palmeiras mirradas em fila indiana na Beira Mar me fez lembrar daquela árvore de copa gorda, opulenta, a árvore da infância, à sombra da qual a gente inventava brincadeiras, do cai no poço à forca, do desenho à adivinhação das paixões de meninice. Nada como a árvore da calçada da casa do tio, que servia de referência para os encontros da noite, em reserva, um anteparo natural e bloqueio à vista de quem passava pela rua, alongando a curiosidade em procura de matéria-prima para as fofocas de depois. Ou a do pátio da escola, uma castanhola muito antiga, tão antiga que não a víamos como algo de fora, mas de dentro, em redor da qual púnhamos o grupo a jogar o que fosse, futebol, vôlei, pião, o tronco repleto de marcas e recados, repositório de declarações feitas a giz ou caneta, tal como um livro. Penso nisso, nas histórias que uma árvore carrega, no tempo que leva para crescer, na maturação demorada, nos jambeiros e cajueiros, nas mangueiras e goiabeiras, e de repente ...

Anitta e as guerras culturais

Acho curioso que uma região específica do corpo de Anitta tenha ensejado mais um episódio das guerras culturais, que se dão num ambiente ultrapolarizado no qual mesmo o CNPJ de empresas é convocado a se posicionar no debate público, assumindo um lado. Fomos do ânus da cantora à Lei Rouanet sem escalas, numa vertigem nacional, chegando agora a possíveis descalabros com o dinheiro público na contratação de shows milionários de artistas sertanejos para apresentações únicas em cidades de pouco menos de 20 mil habitantes. O que começou como um ato de exibição do recalcado, por parte do cantor Zé Neto, vem resultando no desmascaramento de um tipo de negócio muito rentável para quem se ufanava de não depender de recursos do estado, fazendo da crítica a outros artistas um demarcador no espectro ideológico. É também sintomático que os termos dessa disputa sejam esses sobre os quais vêm girando as conversas desde o início de maio, quando o “agroboy”, cujo nome era desconhecido para boa parte do ...

BBB dos descancelados

  Se existe alguma linha que explique a trajetória dos participantes do BBB 22, é talvez a do descancelamento. De Pedro Scooby a Arthur Aguiar, o programa chegou ao fim indultando personagens cujo ingresso na edição havia sido antecedido por um passivo de conduta masculina tóxica. Eram fortes candidatos ao cancelamento caso já não fossem canceladíssimos, por razões diversas, e sua participação representasse, na verdade, uma tentativa de apresentar “um outro lado” que não aquele já conhecido pelas redes sociais. O que se deu, então? Um trio de homens na final quer dizer bastante coisa num produto como o BBB, num momento como este, com eleições à porta e o país às voltas com o descancelamento mobilizado por Bolsonaro de um ex-deputado federal que se comporta no limite da delinquência, um tipo bem-acabado no ultra-direitismo brucutu. Mas pode também não querer dizer nada, e o fato de que a “brotheragem” tenha se imposto ao núcleo feminino seja apenas contingencial, ou seja, fruto da c...