Por engano, onde se lia ócio eu li ódio, e tudo se iluminou. De repente, as coisas passaram magicamente a fazer sentido, como numa transcendência do instante, clareando o derredor, um segredo que se revelasse mediante decifração.
Na verdade, sempre desgostei do tal ócio, aquele postulado por um autor italiano e cujo sentido se aproxima desse tempo desprovido de nada ao qual se volta, gratuitamente, a contemplar a paisagem, o teto do quarto, a quina de uma estante da sala ou a ponta do dedão do pé.
Não é que me parecesse de todo irreal. Estava mais para privilégio, um aristocracismo meio intelectual, meio classista que se supunha que estivesse ao alcance de qualquer um a qualquer hora, quando era exatamente o oposto: o ócio como subproduto da distribuição desigual das horas de labuta e de descanso.
Primeiro me aborrecia e até irritava que alguém pudesse imaginar que um trabalhador tivesse seus momentos desse tipo de ócio apolítico, entre tantas tarefas a fazer, atribuições num dia repleto de problemas, dores de cabeça que se impunham a contragosto, ideias que nos perseguem mesmo depois do expediente, já estirados na cama momentos antes de dormir.
Segundo, que o ócio fosse, além de raro, também criativo e não somente ócio, o que já era bastante coisa. Mas não, carecia de, naquele momento de bissexta desocupação, de “dolce far niente”, o capitalismo ainda me incumbisse de dar ouvidos a esse canto da sereia, vendendo gato por lebre, como sempre costuma fazer, e ainda me obrigando a passar por trouxa por acreditar que estaria realmente perdendo algo valioso se não empregasse meu tempo de maneira criativa.
Mesmo quando em estado de suspensão, de fuga do real, de escapada, o sujeito carrega consigo esse sopro lírico para que, além de ocioso, seja também produtivo, uma culpa por não devotar todas as horas a algo cuja conversão tenha alguma validade mercantil, ainda que atenuada por um adjetivo polvilhado por mão delicada.
Quando involuntariamente substituí ócio por ódio, no entanto, as coisas se encaixaram. O ódio, sim, é um afeto criativo, capaz de portentos. Faz-se muito apenas sob a energia do ódio, que, nesses casos, é sublimado, redirecionado, de modo que, aquilo que originalmente poderia ter um destino desagradável e eventualmente pernicioso, agora se converte em combustível, em força-motriz para uma revolução.
Uma obra de arte, uma música, uma canção, um conto, uma dança, um filme, uma mudança radical de costumes. Parar de fumar, parar de beber. Uma investida insensata contra ideias e situações que pareciam irremovíveis. Uma ida até a academia, um fim de namoro, correr uma maratona, pintar a sala, juntar o lixo.
Uma série de incontáveis atividades se tornam incrivelmente mais simples e rápidas quando executadas na base desse ódio racional, controlado, não o ódio arrebatado, sem peias. A favor desse sentimento há ainda o fato de que se trata de matéria-prima mais abundante do que o ócio, principalmente no Brasil de agora, onde existe um superávit de ódio e sempre que o produto começa a escassear, basta uma visita ao supermercado para reabastecer.
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