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Álbum

As fotos estragaram depois da chuva, os rostos manchados, o mofo diluindo a cobertura cromática, tornando infamiliar o familiar. Estranho o rosto da mãe, do pai, dos tios. Quem era carregado no braço, quem se agachara na hora do retrato, quem aparecia ao fundo da imagem, em contraste, num alçapão da memória? Não sabemos mais. Nunca soubemos. Peço o álbum pra mãe, que me devolve tudo com um gesto de afastamento, como quem entrega objeto pesado, sem serventia, um traste. A memória desfeita, malcuidada, o que eu faria com aqueles retalhos? Que tipo de história eu montaria? Talvez restaurar o possível, dar vida ao que ainda tivesse condições. Não sei. Por muito tempo o álbum permaneceria ao lado da mesa de trabalho, junto a uma bíblia onde mãe anotara o nome do padre que me batizara, hora de nascimento, informações tão precisas quanto desnecessárias agora. Páginas grudadas, cantos inteiramente desfeitos, um borrão todo, como um trabalho realizado a propósito de apagamento deliberado, inte...

Carnaval em Marte

  Sonho com o solo marciano, a aridez vermelha que conheço de jogar videogame e estudar as imagens que chegam por uma sonda cujos passos acompanho desde o início, quando chegou ali sob muita expectativa. O que revelaria o equipamento, um rover com pneus emborrachados? Escrevo a crônica do solo, o mundo alienígena visto sob a perspectiva do dispositivo que alonga a vista do olho humano e teletransporta a experiência, alargando o campo do vivido. Gostaria de andar ali, correr e tropeçar naquelas pedras, o relevo que parece Morro Branco. Então lembro das dunas, das falésias, do carnaval. Um carnaval em Marte, sem Covid, sem Bolsonaro, sem preocupações senão atravessar os dias de folia. Apenas dois blocos desfilando, Spirit e Opportunity, cujas direções, opostas, teriam um único ponto de contato, onde se encontrariam ao final do dia para uma grande farra. Mas isso não é parte do sonho, apenas delírio. Do sonho recorto apenas o chão marciano, calcinado como o do sertão, a piçarra cris...

Terreiro

  De noite chove, e da casa de alpendre se vê apenas sombra. A luz projetada do poste amarelece o terreno em volta da casa, que tem feitio de coisa abandonada. Passamos por ela sem parar. Mas, à frente, tenho desejo de voltar, bater à porta e perguntar se há vivente ali ou apenas fantasma. Pedir uma cadeira e demorar ainda na fachada, observar o terreiro lavado d’água desde a madrugada, os bichos recolhidos ao poleiro, alguns no cercado. Talvez visse a vó do outro lado, acenando como gosta de fazer nos sonhos, sem assustar. Porque já não me assusto com alma, não corro nem finjo incredulidade, não faço gesto de aperreio. Apenas vejo e estudo se quer auxílio e como posso servir-lhe, ou então ignoro, não tenho dívida com esse outro mundo. Eu ficaria ali sentado, cheirando a terra, aspirando mais um bocado o céu da cidade. Estamos na serra, passamos incógnitos. Ninguém nos conhece nem nós a ninguém, de modo que avançamos feito essas sombras que atravessam a chapada, três sombras de per...

O boi

  Seguíamos viagem de volta, sempre mais distraídos do que na ida, quando uma multidão se avistou no alto da estrada. Pensei em acidente, morte, atropelamento, e quase virava o rosto para não flagrar uma perna ou braço para fora de uma coberta, essas cenas que aterrorizam. Mas detive o olhar, demorei a sair, fiquei ali com a vista para fora. Procurava entender o que se passava no acostamento. Um homem manejava a faca, o couro do boi já de todo cortado rente à carne, sem desperdício. A barriga volumosa, a cabeça derreada sobre o tracejado da via. A cena tão ligeira. O golpe certeiro, quanto renderia aquele boi? Ou seria vaca? Me pergunto como morrera, se o tinham matado porque o viram solto, sem dono, ou se um caminhão o havia colhido na estrada. Se o tinham encontrado agonizando e terminaram de acabar com o animal. Não sabia, quis descer do carro, mas era a volta, e na volta sempre desejamos chegar o mais depressa possível. Mal paramos para comer, a paisagem da estrada andando em v...

Não é sobre isso

Curioso, procurei a origem da expressão “é sobre isso” e cheguei a uma ex-participante de BBB cujas frases eram arrematadas sempre da mesma maneira, ainda que nem sempre fizessem sentido, o que costumava acontecer com alguma frequência. Ora, “é sobre isso” convida a pensar sobre o que de fato se trata a coisa em si, um nó sintático-semântico difícil de desatar. A ideia de que um objeto qualquer se defina com tanta clareza mais confunde do que esclarece. É, digamos, uma construção anti-hamletiana, que manda às favas o relativismo do “ser ou não ser”. A coisa toda piora quando ao “é sobre isso” se agrega “e tá tudo bem”, que pressupõe que o interlocutor tenha entendido sobre o que é mesmo o “é sobre isso”. O problema é que, se você ficou preso no curto-circuito da primeira sentença, dificilmente tá tudo bem, principalmente quando não se entende o que pode estar bem. Mas talvez o sucesso dessa coalhada literário-gramatical se deva justamente a isso, a certa vagueza conceitual, de modo que...

Semestre 5

  É errado supor que seja 2022. O ano, na verdade, ainda é 2020, que, por sua vez, é uma versão piorada de 2019. Logo, vivemos o looping do que achávamos que seria o fundo do poço, até que conheceríamos de fato esse fundo. Apenas para, no ano seguinte, entender que o poço não somente não tem fundo, como também se repete. Cenas se sucedendo sem cessar, a sensação de estarmos aprisionados naquela ilha de Lost, com um apresentador maluco girando a manivela e voltando o tempo a cada ciclo de 24 horas. Um dia da marmota em proporções planetárias. Isso soa pessimista? Eu explico. A pandemia acabou com o calendário gregoriano, com nossa ideia de tempo progressivo. O tempo, na verdade, está parado, não passa. Não digo que tenha estagnado de vez porque estou certo de que regredimos, o que só amplia a confusão mnemônica, esse abismo no qual chafurdamos sem saber se avançamos ou se andamos para trás, como um Marty McFly desorientado. O começo de 2021 se assemelha ao de 2022, ou seria o cont...

Cenas do supermercado

  O que dizem aquelas cenas de supermercado? Pessoas se estapeando por um quilo de carne em promoção, o pacote atirado pelo vendedor desenhando um arco e caindo no chão, onde logo se formava um amontoado de gente do qual saía um vencedor. Empunhava a carne como quem ergue um cetro mágico, acima da linha das cabeças dos outros. Uma vitória, sem dúvida. É como os bambolins da escola, só que com adultos e produtos perecíveis. Nada de bombom ou chiclete, agora é alimento que está em disputa, o empurra-empurra é pela sobrevivência. Quem está ali não quer matar o tempo, criar fantasias. Quer levar comida pra casa. Nunca tinha entrado num supermercado em desmonte. Nunca entrei, na verdade, porque vi as cenas apenas pelos jornais, que noticiaram o alvoroço como coisa corriqueira. Tomam por natural o que é de fazer cair o queixo. A pilhagem começou porque a loja está sendo fechada. Outro supermercado vai abrir numa área nobre, ele me disse uns meses atrás, quando as prateleiras ainda não ...