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Postagens

Não é sobre isso

Curioso, procurei a origem da expressão “é sobre isso” e cheguei a uma ex-participante de BBB cujas frases eram arrematadas sempre da mesma maneira, ainda que nem sempre fizessem sentido, o que costumava acontecer com alguma frequência. Ora, “é sobre isso” convida a pensar sobre o que de fato se trata a coisa em si, um nó sintático-semântico difícil de desatar. A ideia de que um objeto qualquer se defina com tanta clareza mais confunde do que esclarece. É, digamos, uma construção anti-hamletiana, que manda às favas o relativismo do “ser ou não ser”. A coisa toda piora quando ao “é sobre isso” se agrega “e tá tudo bem”, que pressupõe que o interlocutor tenha entendido sobre o que é mesmo o “é sobre isso”. O problema é que, se você ficou preso no curto-circuito da primeira sentença, dificilmente tá tudo bem, principalmente quando não se entende o que pode estar bem. Mas talvez o sucesso dessa coalhada literário-gramatical se deva justamente a isso, a certa vagueza conceitual, de modo que...

Semestre 5

  É errado supor que seja 2022. O ano, na verdade, ainda é 2020, que, por sua vez, é uma versão piorada de 2019. Logo, vivemos o looping do que achávamos que seria o fundo do poço, até que conheceríamos de fato esse fundo. Apenas para, no ano seguinte, entender que o poço não somente não tem fundo, como também se repete. Cenas se sucedendo sem cessar, a sensação de estarmos aprisionados naquela ilha de Lost, com um apresentador maluco girando a manivela e voltando o tempo a cada ciclo de 24 horas. Um dia da marmota em proporções planetárias. Isso soa pessimista? Eu explico. A pandemia acabou com o calendário gregoriano, com nossa ideia de tempo progressivo. O tempo, na verdade, está parado, não passa. Não digo que tenha estagnado de vez porque estou certo de que regredimos, o que só amplia a confusão mnemônica, esse abismo no qual chafurdamos sem saber se avançamos ou se andamos para trás, como um Marty McFly desorientado. O começo de 2021 se assemelha ao de 2022, ou seria o cont...

Cenas do supermercado

  O que dizem aquelas cenas de supermercado? Pessoas se estapeando por um quilo de carne em promoção, o pacote atirado pelo vendedor desenhando um arco e caindo no chão, onde logo se formava um amontoado de gente do qual saía um vencedor. Empunhava a carne como quem ergue um cetro mágico, acima da linha das cabeças dos outros. Uma vitória, sem dúvida. É como os bambolins da escola, só que com adultos e produtos perecíveis. Nada de bombom ou chiclete, agora é alimento que está em disputa, o empurra-empurra é pela sobrevivência. Quem está ali não quer matar o tempo, criar fantasias. Quer levar comida pra casa. Nunca tinha entrado num supermercado em desmonte. Nunca entrei, na verdade, porque vi as cenas apenas pelos jornais, que noticiaram o alvoroço como coisa corriqueira. Tomam por natural o que é de fazer cair o queixo. A pilhagem começou porque a loja está sendo fechada. Outro supermercado vai abrir numa área nobre, ele me disse uns meses atrás, quando as prateleiras ainda não ...

Cansaço ou Covid?

  Chegamos ao ponto em que qualquer pequeno sintoma pode ser qualquer coisa, da Covid à gripe, passando por tristeza ou apenas uma reação alérgica normal à realidade do Brasil de 2022, que é uma continuação do Brasil de 2020. De modo que determinar se estamos doentes ou somente vivendo sob Bolsonaro se tornou tarefa mais difícil, quase impossível. Afinal, quem consegue distinguir entre saudáveis e acometidos de alguma enfermidade, uma vez que os saudáveis parecem doentes e os doentes se julgam saudáveis? Cada vez mais esses dois estados se intercambiam, se equivalem, tornando-se uma coisa só, num processo de adoecimento coletivo do qual tomam parte mesmo aqueles que se recusam. Quando a isso se juntam uma pandemia e uma gripe sazonal turbinada por outras causas, entre elas o fato de que estamos numa deriva governamental, o cenário é terrivelmente preocupante. É então que bate a dúvida: se, numa manhã qualquer, o corpo responde automaticamente e a energia se encontra no volume mor...

Diálogos

  Tenho sintomas gripais, digo a uma moradora do prédio, que assente com a cabeça, ela mesma também convalescente de uma gripe severa que a derrubou por cinco ou seis dias, não recorda agora, apenas que ficou isolada da família durante esse período no qual oscilou entre suspeita de Covid e H3N2, ou uma combinação de ambas. No meu bloco todos adoecemos nas duas últimas semanas, pelos corredores uma sinfonia de tosses secas e gordas, o corpo emitindo sinais de que está sob ataque. Pais que contaminaram filhos que contaminaram mães que contaminaram avós. Estive assim por mais de uma semana, pernas e braços açoitados, a cabeça como que pressionada por duas paredes fechadas contra mim, a vista turvada e o juízo pequeno, sem condições de leitura, inapto para qualquer atividade que não fosse o repouso. Agora me sinto melhor, me recupero aos poucos, consigo ler e escrever. Antes achei que não voltaria, por alguma razão a doença havia me privado dessa competência, eu teria de inventar outra...

Planos para 2022

  A dúvida: fazer planos ou não, estabelecer metas ou não? Simplesmente deixar correrem os dias, sem previamente demarcá-los com um asterisco na agenda, apontamentos que levem a tarefas programadas desde já? Ou adotar de vez um modo free style de vivência, desobrigado dessa coisa maçante que é cobrir os dias com pretensões e expectativas, arrumá-los na estante antes que cheguem? Adotar um meio termo, ou seja, inscrever como compromisso ou nota apenas o essencial, deixando margem para que o contingente se infiltre e eventualmente desorganize essa linearidade pressuposta? Mas não é da natureza do contingente essa capacidade de desmantelar estruturas coesas, tenham elas a feição que tiverem? Antes de decidir, quis revisitar as anotações do ano passado, mas não sei onde estão. Eu as perdi, certamente as perdi. Ou, pelo contrário, talvez as tenha cumprido estritamente e jogado fora, imprestáveis depois de executadas, vazias para qualquer uso, e agora não lembro de nada. Também posso tê...

Sem título

  Nadei até o barco de madrugada, talvez duas ou três da manhã, já não lembro. Cada braçada se seguindo à anterior e antecedendo a seguinte, o movimento repetitivo e seguro, quase banal de tão mecânico, até finalmente chegar a essa criatura marinha cuja existência era um assombro para mim. Que se mantivesse intacta na sua desmesura ferruginosa enquanto tudo o mais se refazia era uma questão que me agradava mais do que surpreendia. Procurei a escada da embarcação naufragada. Encontrei, subi. Ela me levou até uma espécie de convés, e do convés andei tateando às escuras. Vasculhei cada pedaço do barco, mas logo entendi que eu não fora até ali procurar nada. Eu tinha procurado apenas um lugar para sentar e olhar de volta. Assumir a perspectiva da personagem fora do quadro, de quem não participa, exatamente como tinha sido a vida inteira. Ou pelo menos do que eu lembrava que fora a vida, já que partes dela haviam se apagado depois da crise e da ida ao hospital e das 48 horas em que fiqu...