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Gkayverse

       Há dias me pergunto quem é Gkay, e nisso não vai nenhuma soberba, mas curiosidade mesmo, de modo que me pus a pesquisar movido por aquilo que alimenta a humanidade: a fofoca. Li em algum lugar sobre fato impudico que tinha se passado entre dois famosos num certo quarto escuro de um certo lugar em Fortaleza. Ora, esse lugar era a festa da Gkay. Demorei a entender que Gkay era uma pessoa e não uma marca de óculos ou de roupa, apenas para descobrir que é uma pessoa e uma marca ao mesmo tempo. E que a tal festa era seu aniversário de 29 anos, mas também um encontro em grande escala de celebridades e subs da internet e do circuito artístico-popular brasileiro. Um aniversário que se estendera do domingo até a quarta-feira, com lista de convidados, atrações, hospedagem e patrocínio para a farra toda, além da cobertura sistemática de cada passo dos famosos que tinham marcado presença e se instalado no hotel, passando a filmar tudo e a postar nas redes. Em resumo, um F...

A primeira-dama

  Vejo a cena mais uma vez. A primeira-dama aos saltos na sala repleta de gente, muitos sem máscara, persignando-se e agradecendo a Deus pela aprovação de um indicado do presidente para vaga de ministro da Suprema Corte, de cujos aspirantes a membro se exigem notório saber e reputação ilibada, nunca qualquer filiação religiosa. Mas o vídeo sugere o oposto, que o ungido pelo chefe deve parte de sua escolha ao fato de que é evangélico. Mais que isso, que a aprovação é sinal de dádiva alcançada, de graça obtida, e não de cenário em que os interesses parlamentares de oposição e de situação convergem pragmaticamente para o mesmo ponto: o atendimento de pleitos comuns a qualquer senador eleito. A primeira-dama então desanda a “falar em línguas”, que é um modo de tocar o espírito santo recorrendo à “gramática dos anjos”, num jorro desarticulado de sons que, aos que acreditam na mensagem, têm algum sentido cifrado. Em seguida, dá alguns pulinhos e só depois abraça o ungido pelo Messias, já...

Dezembro

  Estamos a poucos dias de vencer 2021, digo a mim mesmo, uma sentença pomposa, que sugere mudança não apenas numérica, mas qualitativa. A passagem, o salto etc. São quatro segundas-feiras, calculo no celular. Ou 744 horas. Ou pouco mais de 44 mil minutos, o que parece grande coisa, mas não é. Ou não parece que é, mas é. Último mês do segundo ano de pandemia, dezembro deu a entender que chegaria autorizando algum otimismo, mas logo veio a nova variante, e os festejos foram suspensos, e o carnaval de novo adiado. Voltamos dez casas e estamos de novo em abril do ano passado, refazendo passos e retraçando planos. Não para agora. Suspendemos o que já estava em suspensão. Passamos por 2021 como num susto, um ano que poderia ter sido encurtado por decreto, um plebiscito, uma ação coletiva ou enquete. Mas cá estamos, algumas varandas já ornamentadas, arranjos de flores e pisca-piscas repuxados em fachadas a lembrar de que o Natal é logo ali. Tempo quente, faz calor a toda hora, durante ...

Tá querendo chover

  “Tô querendo gripar”, “tá querendo chover”... Há um uso particular da locução verbal “estar querendo”, empregada para denotar falsa vontade, não um desejo, mas o contrário. Afinal, ninguém quer adoecer, tampouco a chuva é expressão do arbítrio, de escolha, mas fenômeno climático que de repente se precipita, queira-se ou não. E, no entanto, usamos como quem admite aspiração secreta, fruto de sabe-se lá que forças íntimas que nos levam a querer até mesmo o que não devíamos, o que nos faz mal e, em última análise, deveria permanecer longe, como uma gripe. Mas é assim com a língua, logo estamos por aí falando de um jeito que anuncia não a doença, mas seu começo. Como se farejássemos o início de algo, que ainda não está ali, mas já está. Presente nesse estar querendo, que, de tão esticado na ação, que se anuncia para logo, embora não se saiba ao certo para quando, vai adiando o fato em si, seja ele bom ou ruim. Estar querendo é mais desejo do que coisa real? Não sei, mas, no falar da ...

A selva

  Eu procurava o tio mesmo quando não o procurava, quando ainda não sabia que poderia encontrá-lo, quando pensava que tinha morrido ou se extraviado. O tio perdido na selva, o tio casado com uma boliviana, o tio pai de uma criança, o tio retornado ao Brasil. O tio era figura sobre quem não se falava, de quem não havia carta, tampouco registro fotográfico. Uma imagem do tio alegre ou carrancudo, uma frase sequer, um bilhete do tio deixado sobre o tampo da mesa ou no fogão da cozinha endereçado à avó. Nada o tio deixou, foi embora assim, como quem se despede brevemente, mas depois muda de ideia e no caminho resolve que pode ir a qualquer lugar que lhe dê vontade. Foi assim o tio, colapsou, o fio cortado da arraia que voa. O tio era uma visagem, diziam, acreditava em fantasma, de repente calava-se e conversava sozinho. Mas digo que é mentira, inventam coisas porque ao tio faltam elementos, ninguém sabe ao certo como era, por isso têm precisão de lhe forrar com essas baboseiras e coisa...

Papai Noel nas alturas

  A multidão de crianças no estacionamento era febril, quase selvagem. Um grupo de pequenos Hooligans batendo o pé no chão. Menino sujo de sorvete, menina descabelada, pais sobraçando roupas, pingando suor debaixo daquele calor e agradecendo de tempos em tempos as lufadas de ar gelado que saíam de dentro do shopping. Tudo pra quê? Pra ver o Papai Noel chegando, conforme anunciava o jornal, em letras garrafais, uma promessa na qual eu quis acreditar mais do que minha filha, que me perguntou com franqueza se deveria ficar alegre com isso. Menina, não estraga a magia, eu pensei em lhe dizer, mas percebi que se fizesse isso era porque a magia já estava na casa do sem jeito. Fingi desatenção, e deixamos o assunto morrer. No meu tempo Papai Noel não chegava, tampouco era anunciado com dois meses de antecedência. No dia marcado, a gente queria acreditar e acreditava, de modo que o Papai Noel ia embora antes de chegar de fato, sem essa entrada pomposa de cantor popstar. De seu rastro, na m...

Sofrência

  Foi só depois da terceira festa no já distante 31 de dezembro de 2016 que me convenci de que havia algo ali que não apenas o frisson habitual em torno de um hit de fim de ano. Pela milésima vez, ouvia a voz esganiçada da dupla mato-grossense Maiara e Maraísa esgrimindo versos indecorosos como "E na hora em que eu te beijei/ Foi melhor do que eu imaginei", da canção "Medo bobo", ou os da prematuramente clássica "10%", cuja letra narra em tom realista a derrocada física e psicológica de uma mulher apaixonada: "Tô escorada na mesa/ Confesso que eu quase caí da cadeira/ E esse garçom não me ajuda, já trouxe a 20ª saideira". Uma mulher. Bêbada. Apelando ao esteio de uma mesa de bar a fim de evitar a queda definitiva. Amparando-se na cumplicidade do garçom, esse personagem que habita o imaginário etílico masculino, de modo a não degringolar de vez ("Garçom, troca o DVD/ Que essa moda me faz sofrer/ E o coração não 'guenta"). Houve um te...