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Round 6 made in Ceará

  Não é exagero dizer que a infância de qualquer cearense na periferia de Fortaleza nos idos dos 1990 se aproximou em alguma medida da série Round 6. Não digo que houvesse disputa feroz cujo desfecho era a morte, mas quem brincou de polícia e ladrão, bandeira, pau de fogo e outras estripulias sabe o quanto a sua integridade física estava em risco assim que punha os pés na rua. Que, por si só, já representava um perigo: mal calçamentada, cheia de desníveis, esgoto correndo livre, com pedras expostas nas quais deixávamos uma banda do dedão jogando bola ou parte do joelho depois de cair e esfolar a perna, salgada com mertiolate a gosto do sadismo materno ou paterno. Quantas vezes não levei surra da mãe depois de apanhar numa disputa de bandeira ou de pau de fogo, quando voltava com os pulsos vermelhos das vergastadas que recebia após perder rodadas sucessivas e ficar com o braço dormente e inchado, com marcas que levavam tempo para se apagar. Não era bonito nem saudável, mas era ...

O mar começa aqui

  “O mar começa aqui”, leio a inscrição enquanto olho pro chão, uma tampa de esgoto que alerta para o que não está ali, uma advertência sem nome ao passante que eventualmente deseje se desfazer de algum pertence, um objeto, uma carteira ou papel rasgado, uma garrafa plástica ou qualquer outra coisa. De modo que, ao se voltar pra baixo, ele ou ela se depara com a frase: o mar começa aqui, e aqui significa que o esgoto é também mar. O dejeto é carregado para além por esse fluxo e chega ao outro lado, atravessa uma parte da cidade, ganha volume ao encontrar outros veios com matéria orgânica descartada e finalmente atinge o ponto depois do qual o horizonte se abre inteiramente, e o que é resto se dilui na massa salgada. O mar começa aqui é menos um aviso do que um convite.

Espigão

  Há algo de divertido na palavra: espigão. Como se se jogasse ao mar uma espiga de milho de cuja existência se esperasse qualquer coisa mágica além de flutuar ou afundar. Espigão era como chamava um amigo mais alto na escola, desengonçado que só ele, péssimo para o futebol e qualquer esporte que envolvesse as pernas, salvo basquete. Mas espigões são estruturas concretas, reais, não carregam nada da leveza do vocábulo nem o caráter estabanado, nada do que talvez devessem ter herdado do milho ou do aparto longilíneo do corpo de adolescente. Braço de pedra que entra na água, espichado por força do acúmulo, um istmo através do qual se procura deter alguma natureza que, por intervenção anterior, se fez imprevisivelmente presente. É resposta adivinhada a problema insolúvel, sempre jogado para adiante. Como a presença de tubarões em Balneário de Camboriú, por exemplo, lá onde a praia foi aterrada e uma larga faixa de areia aberta de cabo a rabo, tal como em Fortaleza. Por aqui também v...

O ano que poderia ter sido um email

  Às vezes acontece de perceber que já é outubro e então pensar que mês que vem é novembro e daqui a pouco o ano acaba. Um ano que, sem prejuízo algum, poderia ter sido um email, uma mensagem protocolar trocada que nos dispensasse de atravessá-lo, de chegar ao descompasso derradeiro, acumulando mortos e contando a hora de passar a folha do calendário, fazendo valer a força do pensamento mágico de que logo tudo ficará bem porque os números se alteram numa contagem arbitrária cujo início já perdemos. Nesse email que seria 2021, trocaríamos informações sobre como proceder do modo mais seguro e sem atropelos para cada um, com o único objetivo de assegurar que o tempo escorresse e cruzássemos a linha de chegada sãos e salvos – talvez não tão sãos, mas pelo menos a salvo. Caso necessário, reenviaríamos o email, com ou sem anexos, informaríamos que, conforme o combinado, seguiria o texto tal e qual havíamos decidido, o roteiro do ano se desenrolando sem sobressaltos ou com o mínimo de sur...

Mara Hope

Volto à praia para uma volta de bicicleta depois de, sei lá, alguns meses, período no qual pensei que encontraria tudo mudado, o avesso da paisagem desfeita por máquinas, tratores e homens, o antigo apagado e o novo como que escrito por cima, sobrescrito, como se faz com texto no caderno de pauta da escola. Uma cidade que é eterna rasura, nela mal se escreve e já se apaga, de modo que as folhas estão sempre cheias de grafismos atrás de grafismos, do velho resta então o traço adivinhado na falta, o novo como a projeção de algo falhado. Uma geografia enviesada, torta, feita de areia remexida, os espigões recém-construídos e a quebra de mar avançada, distante, como aos poucos fossem empurrando a água ante o avanço dos prédios, que é como a lógica opera. A ressaca é do tijolo, da construção, não da maresia. O mar se encurta a pretexto de alargar faixa de chão para que banhistas e moradores tenham onde armar seu guarda-sol e os donos das varandas onde descansar a vista deitados nas redes. M...

Apagão, tornados, vulcão: o fim do mundo

  Enquanto escrevo sobre essa ideia de que o fim está perto, falências, explosões, tornados, fenômenos inexplicáveis, tempestades de areia, o surgimento de sinais que parecem bíblicos e remetem ao apocalipse, de repente entra uma mariposa no quarto através da janela aberta. Passa das duas da manhã. A mariposa borboleteia e se desapruma em torno da lâmpada acesa, cai aos poucos, perde altitude exatamente como um avião em parafuso. É finalmente apanhada pelo gato, que havia se esgueirado sem que eu o tivesse visto e, no momento certo, deu o bote. Depois saiu com a mariposa na boca parecendo um longo bigode como o de Nietzsche. Uma visão engraçada e triste, engraçada porque meu gato até hoje não havia capturado nada, mesmo uma barata mais lerda lhe escapa facilmente das garras. E triste porque era uma grande mariposa marrom, de asas farfalhantes e voo irresoluto, caótico, que desenhava no ar figuras geométricas nunca vistas, a primeira que entrara no quarto, quem sabe a última também....

A foto de criança

  Eu não queria rir, digo pra minha mãe ao lhe mostrar a foto da criança que fui mais de 30 anos atrás. Nela pareço muito feliz, o sorriso armado de orelha a orelha, vestindo uma camisa de festa de mangas compridas porque era assim que o pai queria me ver. Meu aniversário de cinco anos. Lembro de desfilar com ele me carregando no braço, passando de mesa em mesa no terreno ao lado da casa onde mandou instalar luzes escoradas por estacas debaixo das quais os convidados ficavam sentados esperando a comida, porque num aniversário de criança não se espera outra coisa além de comer. Depois os presentes, retirados das caixas com pressa, um boneco, um avião da Varig que minha madrinha tinha dado. Brinquei com ele por muito tempo, arremetendo e pousando no corredor da casa pequena no bairro onde a gente era vizinho de um radialista que morava num palacete, mas que depois descobri que vivia num imóvel como tantos outros, o nosso é que era minúsculo. A mãe tinha me obrigado a sorrir. Eu não q...