Pular para o conteúdo principal

O ano que poderia ter sido um email

 

Às vezes acontece de perceber que já é outubro e então pensar que mês que vem é novembro e daqui a pouco o ano acaba.

Um ano que, sem prejuízo algum, poderia ter sido um email, uma mensagem protocolar trocada que nos dispensasse de atravessá-lo, de chegar ao descompasso derradeiro, acumulando mortos e contando a hora de passar a folha do calendário, fazendo valer a força do pensamento mágico de que logo tudo ficará bem porque os números se alteram numa contagem arbitrária cujo início já perdemos.

Nesse email que seria 2021, trocaríamos informações sobre como proceder do modo mais seguro e sem atropelos para cada um, com o único objetivo de assegurar que o tempo escorresse e cruzássemos a linha de chegada sãos e salvos – talvez não tão sãos, mas pelo menos a salvo.

Caso necessário, reenviaríamos o email, com ou sem anexos, informaríamos que, conforme o combinado, seguiria o texto tal e qual havíamos decidido, o roteiro do ano se desenrolando sem sobressaltos ou com o mínimo de surpresas possível.

Em seguida, encaminharíamos um segundo ou terceiro email intitulado VALE ESTE, em caixa alta, no qual faríamos correções e adendos ao primeiro e acrescentaríamos elementos imprevistos, sem os quais não teríamos condições de acabar com o ano.

Porque ao final a sensação será a de que acabamos com 2021 ou ele com a gente, mas nunca a de que o ano simplesmente se encerrou, passivamente, sem vencedores ou vencidos.

De qualquer maneira, apesar desse vaivém nas trocas e acusações de recebimento ou de extravio, 2021 ainda seria um email, uma mensagem virtual endereçada a quem de direito, um texto que, sob desculpa razoável, poderíamos até mesmo alegar esquecimento ou caixa postal cheia a fim de ignorá-lo.

Como email, poderíamos inclusive recusar 2021, não lê-lo, deixá-lo intocado e abri-lo apenas em 2045 ou sabe-se lá quando, talvez nunca, dele ficando o mistério ou o incômodo da presença desagradável acusando-se discretamente.

Eu o teria lido, claro, não suportaria a ideia de um email não lido na minha caixa. E, ao fazê-lo, pensaria talvez no quão custoso teria sido viver 2021 presencialmente, e não remotamente, como estávamos fazendo agora.

Eu imaginaria cada uma daquelas situações pelas quais teria de passar ao vivo e em cores, como teria reagido sem o tempo que a leitura permite, já que, tratando de tudo por email, pude muitas vezes parar para refletir e só então decidir sobre uma questão qualquer.

Certamente viver 2021 fisicamente teria sido uma experiência diferente, não digo nem boa nem ruim, mas diferente, digo a mim mesmo. Mas, no fundo, não consigo me convencer de que o ano que termina daqui a dois meses não poderia ter sido, quando muito, um email.

Seria longo, é verdade, mas ainda teríamos a vantagem de passar por ele pulando algumas partes.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d