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Postagens

Apagão, tornados, vulcão: o fim do mundo

  Enquanto escrevo sobre essa ideia de que o fim está perto, falências, explosões, tornados, fenômenos inexplicáveis, tempestades de areia, o surgimento de sinais que parecem bíblicos e remetem ao apocalipse, de repente entra uma mariposa no quarto através da janela aberta. Passa das duas da manhã. A mariposa borboleteia e se desapruma em torno da lâmpada acesa, cai aos poucos, perde altitude exatamente como um avião em parafuso. É finalmente apanhada pelo gato, que havia se esgueirado sem que eu o tivesse visto e, no momento certo, deu o bote. Depois saiu com a mariposa na boca parecendo um longo bigode como o de Nietzsche. Uma visão engraçada e triste, engraçada porque meu gato até hoje não havia capturado nada, mesmo uma barata mais lerda lhe escapa facilmente das garras. E triste porque era uma grande mariposa marrom, de asas farfalhantes e voo irresoluto, caótico, que desenhava no ar figuras geométricas nunca vistas, a primeira que entrara no quarto, quem sabe a última também....

A foto de criança

  Eu não queria rir, digo pra minha mãe ao lhe mostrar a foto da criança que fui mais de 30 anos atrás. Nela pareço muito feliz, o sorriso armado de orelha a orelha, vestindo uma camisa de festa de mangas compridas porque era assim que o pai queria me ver. Meu aniversário de cinco anos. Lembro de desfilar com ele me carregando no braço, passando de mesa em mesa no terreno ao lado da casa onde mandou instalar luzes escoradas por estacas debaixo das quais os convidados ficavam sentados esperando a comida, porque num aniversário de criança não se espera outra coisa além de comer. Depois os presentes, retirados das caixas com pressa, um boneco, um avião da Varig que minha madrinha tinha dado. Brinquei com ele por muito tempo, arremetendo e pousando no corredor da casa pequena no bairro onde a gente era vizinho de um radialista que morava num palacete, mas que depois descobri que vivia num imóvel como tantos outros, o nosso é que era minúsculo. A mãe tinha me obrigado a sorrir. Eu não q...

Nota explicativa

  Convém situar temporal e emocionalmente as últimas postagens, parte das quais motivada – eu diria estimuladas, catapultadas ou mesmo arremessadas – por um fator algo casual, algo esotérico, a saber: uma música do Tame Impala em ritmo de suingueira na qual estive preso por cerca de 15 minutos, que depois viraram meia hora, talvez 45min, de maneira que o entrechoque de camadas sonoras e culturais, entre som e imagem, entre suporte e mensagem, entre emissão e recepção – considerando tudo isso, me vi na posição de recorrer à escrita para expressar o que essa peça havia causado, tentando dar forma ao estupor e ao ímpeto de transformar esse mesmo hibridismo em manufatura literária, mas é óbvio que sequer me atrevi a cometer tal empreitada, de resto condenada desde sempre ao fracasso. Mas, de tudo isso, fica, é certo, o prazer da fruição, a surpresa, o reconhecimento ao labor artístico de quem, se achando sem ter o que fazer em algum momento do seu dia ou da noite, jogou uma base de sui...

Perestroika

  Mesmo cansado, decido anotar uma ideia, que logo não me parece mais digna de qualquer atenção, de modo que a deixo de lado enquanto escrevo. E então o pensamento se volta a outro assunto, um tema que não aquele inicial, enredando-se no próprio rabo, cavoucando a razão pela qual julguei que seria interessante – necessário – escrever qualquer coisa que me fizesse esquecer o dia extenuante de trabalho e as pequenas dores de cabeça que marcam uma rotina de telefonemas e textos escritos a uma velocidade cujo andamento às vezes me impede de ler o que estou escrevendo, o que vai ali, como acontece agora. Apenas depois de feito é que paro e me ponho a averiguar tudo, a pensar se de fato se trata disso ou daquilo, se estou bem, se considero tomar banho antes de dormir ou se, vencido pelas horas acumuladas, essas horas que pesam no corpo como dívidas numa caderneta de fiado ou como as orelhas penduradas no colar do coronel Kurtz, talvez seja preferível me jogar na cama desse jeito mesmo. S...

A impotência do potente

  De tudo que leio e escuto em artigos, entrevistas e talk shows engajados, talvez potente seja o que mais incomoda. A exaustão da palavra, sua impotência mesmo, referida sistematicamente e a propósito de qualquer coisa. Uma fala, uma postagem, uma música, uma tirinha, um vídeo do TikTok, uma receita da avó, uma dança nova, uma tatuagem, um hambúrguer: tudo é potente, dito desse modo cheio de gravidade que pretende fazer do ato mais do que é, de excepcionalizá-lo, conferindo à expressão uma áurea sacra que dispensa comentários e maiores reflexões. Se é potente, é bom. Me pergunto em que momento o potente se tornou o seu contrário, o impotente, se foi antes ou depois da morte da narrativa. Se ambas vieram a óbito simultaneamente, fruto do mesmo processo de erosão linguístico, qual seja, o abuso do emprego de um vocábulo, despindo-o, ao cabo de tanto tempo, de substância e significação, restando de seu sentido e força originais apenas bagaço. Com a narrativa deu-se algo semelhante, m...

Bonito de máscara

Há um tipo que se lamenta à medida que as restrições sanitárias vão se afrouxando e por todo canto a vida se impõe como novidade: o bonito de máscara. É categoria nova, criada pela pandemia, que, entre outras mudanças, alterou radicalmente o regime estético nacional, diria global, planetário, mas receio exagerar. De modo que me sinto à vontade apenas pra falar da cidade e, quando muito, do bairro. Aqui, por todo canto veem-se ainda as pessoas usando a máscara, mesmo nas mesas de café e na cantina do supermercado, levantando-a para morder a coxinha ou mergulhar o pão no café, mas logo cobrindo-se de novo. É conduta misteriosa, pensei comigo, eu mesmo relutante entre continuar sob a máscara e me descobrir brevemente enquanto me alimento. A insistência do hábito, suspeito então, não tem relação apenas com cuidados, tampouco com apego desmedido a um acessório que, antes estranho, foi progressivamente incorporado ao dress code de qualquer vivente. Não que o cearense se esmere assim tão mais...

Placas de cidade

  Numa viagem gosto sempre desse momento em que se atravessa o portal de boas-vindas, a placa anunciando que, dali em diante, está-se lá, na cidade, que pode ser qualquer uma. Placas dessa natureza não se distinguem, são iguais, mudam-se os nomes, mas a mensagem é a mesma. Talvez por isso tenha simpatia por elas, por essa tentativa algo ingênua de fazer supor que, apenas pelo poder da sugestão, vive-se num clima diferente porque, afinal de contas, estamos a atravessar essa cidade e não outra, então é como se o tempo se suspendesse. E esse contínuo do deslocamento de uma viagem sertão adentro se corta, se interrompe, é feito de pequenas travessias por lugares em tudo iguais, principalmente nas placas. Mas vejam como são bonitas, como carregam poesia nessa cafonice que é desejar que volte sempre, na espera de que o visitante, mal tendo passado, haja construído sobre o vilarejo uma impressão definitiva, marcante, de modo que da cidade sempre se lembrará e, mais que isso, dela sempre t...