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Postagens

Nota explicativa

  Convém situar temporal e emocionalmente as últimas postagens, parte das quais motivada – eu diria estimuladas, catapultadas ou mesmo arremessadas – por um fator algo casual, algo esotérico, a saber: uma música do Tame Impala em ritmo de suingueira na qual estive preso por cerca de 15 minutos, que depois viraram meia hora, talvez 45min, de maneira que o entrechoque de camadas sonoras e culturais, entre som e imagem, entre suporte e mensagem, entre emissão e recepção – considerando tudo isso, me vi na posição de recorrer à escrita para expressar o que essa peça havia causado, tentando dar forma ao estupor e ao ímpeto de transformar esse mesmo hibridismo em manufatura literária, mas é óbvio que sequer me atrevi a cometer tal empreitada, de resto condenada desde sempre ao fracasso. Mas, de tudo isso, fica, é certo, o prazer da fruição, a surpresa, o reconhecimento ao labor artístico de quem, se achando sem ter o que fazer em algum momento do seu dia ou da noite, jogou uma base de sui...

Perestroika

  Mesmo cansado, decido anotar uma ideia, que logo não me parece mais digna de qualquer atenção, de modo que a deixo de lado enquanto escrevo. E então o pensamento se volta a outro assunto, um tema que não aquele inicial, enredando-se no próprio rabo, cavoucando a razão pela qual julguei que seria interessante – necessário – escrever qualquer coisa que me fizesse esquecer o dia extenuante de trabalho e as pequenas dores de cabeça que marcam uma rotina de telefonemas e textos escritos a uma velocidade cujo andamento às vezes me impede de ler o que estou escrevendo, o que vai ali, como acontece agora. Apenas depois de feito é que paro e me ponho a averiguar tudo, a pensar se de fato se trata disso ou daquilo, se estou bem, se considero tomar banho antes de dormir ou se, vencido pelas horas acumuladas, essas horas que pesam no corpo como dívidas numa caderneta de fiado ou como as orelhas penduradas no colar do coronel Kurtz, talvez seja preferível me jogar na cama desse jeito mesmo. S...

A impotência do potente

  De tudo que leio e escuto em artigos, entrevistas e talk shows engajados, talvez potente seja o que mais incomoda. A exaustão da palavra, sua impotência mesmo, referida sistematicamente e a propósito de qualquer coisa. Uma fala, uma postagem, uma música, uma tirinha, um vídeo do TikTok, uma receita da avó, uma dança nova, uma tatuagem, um hambúrguer: tudo é potente, dito desse modo cheio de gravidade que pretende fazer do ato mais do que é, de excepcionalizá-lo, conferindo à expressão uma áurea sacra que dispensa comentários e maiores reflexões. Se é potente, é bom. Me pergunto em que momento o potente se tornou o seu contrário, o impotente, se foi antes ou depois da morte da narrativa. Se ambas vieram a óbito simultaneamente, fruto do mesmo processo de erosão linguístico, qual seja, o abuso do emprego de um vocábulo, despindo-o, ao cabo de tanto tempo, de substância e significação, restando de seu sentido e força originais apenas bagaço. Com a narrativa deu-se algo semelhante, m...

Bonito de máscara

Há um tipo que se lamenta à medida que as restrições sanitárias vão se afrouxando e por todo canto a vida se impõe como novidade: o bonito de máscara. É categoria nova, criada pela pandemia, que, entre outras mudanças, alterou radicalmente o regime estético nacional, diria global, planetário, mas receio exagerar. De modo que me sinto à vontade apenas pra falar da cidade e, quando muito, do bairro. Aqui, por todo canto veem-se ainda as pessoas usando a máscara, mesmo nas mesas de café e na cantina do supermercado, levantando-a para morder a coxinha ou mergulhar o pão no café, mas logo cobrindo-se de novo. É conduta misteriosa, pensei comigo, eu mesmo relutante entre continuar sob a máscara e me descobrir brevemente enquanto me alimento. A insistência do hábito, suspeito então, não tem relação apenas com cuidados, tampouco com apego desmedido a um acessório que, antes estranho, foi progressivamente incorporado ao dress code de qualquer vivente. Não que o cearense se esmere assim tão mais...

Placas de cidade

  Numa viagem gosto sempre desse momento em que se atravessa o portal de boas-vindas, a placa anunciando que, dali em diante, está-se lá, na cidade, que pode ser qualquer uma. Placas dessa natureza não se distinguem, são iguais, mudam-se os nomes, mas a mensagem é a mesma. Talvez por isso tenha simpatia por elas, por essa tentativa algo ingênua de fazer supor que, apenas pelo poder da sugestão, vive-se num clima diferente porque, afinal de contas, estamos a atravessar essa cidade e não outra, então é como se o tempo se suspendesse. E esse contínuo do deslocamento de uma viagem sertão adentro se corta, se interrompe, é feito de pequenas travessias por lugares em tudo iguais, principalmente nas placas. Mas vejam como são bonitas, como carregam poesia nessa cafonice que é desejar que volte sempre, na espera de que o visitante, mal tendo passado, haja construído sobre o vilarejo uma impressão definitiva, marcante, de modo que da cidade sempre se lembrará e, mais que isso, dela sempre t...

O que você fez enquanto o Whatsapp estava fora?

  Os primeiros quarenta e cinco minutos foram os mais difíceis. A síndrome da falta de notificações disparando a cada ausência de disparo real me levou a checar o celular inúmeras vezes, apenas para entender que algo com a minha internet estava errado. Mas o quê? Eu tinha pago os boletos, o celular era novo, estava em área de cobertura. Mesmo assim, reiniciei o aparelho duas vezes, sem sucesso. Foi quando resolvi abrir uma aba e digitar que percebi a dimensão do estrago. Era o apocalipse das comunicações, o armagedon da fofoca, o clássico fim das eras que eu tinha visto no cinema e que agora se realizava bem debaixo do meu nariz. Nas horas seguintes, rodei pelos cômodos da casa sem me decidir se esperava o sistema voltar ou se partia para outra e tentava matar o tempo. Queria fazê-lo avançar, não suportava a ideia de que os minutos se contassem a conta-gotas, sem a interação para mediar esse envelhecimento ultralento. Era como se tivesse sido sequestrado pelo presente, capturado po...

Tsunami

  Passa das dez, a mãe envia uma mensagem de áudio. Está preocupada com a tsunami. E se a onda chegar aqui, pergunta, e se estiver dormindo, e se não der tempo de correr, e se, e se, entre divertida e preocupada. Temos preocupações semelhantes. Não importa se as chances são remotas e nada disso vai acontecer. É a hipótese que assusta. À noite, antes de dormir, penso no ponto mais alto do meu estado, da minha cidade, do meu bairro, e me pergunto também se chegaria a tempo de escapar, de não ser arrastado. As imagens daquele filme com o ator que faz o Homem-Aranha se reproduzindo em escala local, no lugar daquelas vias e hotel, as casas e ruas de Fortaleza. Mãe, a senhora sabe que a probabilidade é pequena, eu li a matéria que fala com o cara do Labomar, ele disse pra gente ficar despreocupado, dormir sossegado, não vai ter onda. Disse isso mesmo? Tento lembrar as palavras exatas e não consigo, mas o sentido é esse mesmo, confirmo, estou falando de cabeça, mãe. E lhe digo então que a...